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[Artigo] – Vade retro Idade Média: por uma agenda Iluminista

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O jornalista Fábio Sena | FOTO: Reprodução |

Por Fábio Sena*

“Mulher de malandro sabe ser carinhosa de verdade. Ela vive com tanto prazer, quanto mais apanha a ele tem amizade. Longe dele tem saudade. Muitas vezes, ela chora, mas não despreza o amor que tem. Sempre apanhando e se lastimando e perto do malandro se sente bem”. Foi Francisco Alves quem celebrizou Mulher de Malandro, samba de Heitor dos Prazeres cuja letra, um manifesto medievo em pleno Século XX, dispensa comentários quanto ao caráter predatório e machista de então.

No álbum Antologia do Samba Choro – no qual faz parceria com Germano Mathias, extraordinário sambista ainda não suficientemente reconhecido – Gilberto Gil interpreta “Minha Nega na Janela”, de igual modo reveladora do caráter racista, machista e patriarcal da época em que foi composta, meados do século passado. “Minha nega na janela diz que está tirando linha. Êta nega tu é feia que parece macaquinha. Olhei pra ela e disse: Vai já pra cozinha. Dei um murro nela e joguei ela dentro da pia. Quem foi que disse que essa nega não cabia?”

O sambista Ataulfo Alves – antes de compor “Ai que saudades da Amélia”, cuja letra é de Mário Lago – também aprontou das suas. Com Mulata Assanhada, ele reivindica a volta do regime escravista, tudo para apropriar-se de seu objeto de desejo. “Ai, meu Deus, que bom seria se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão”. Esta canção ganhou sofisticada repercussão na voz de três beldades: Elza Soares, Elias Regina e Elizeth Cardoso, a Divina.

No final de março – Mês da Mulher – ganharam repercussão nacional estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que tratam da violência contra o sexo feminino. Além de uma edição do Sistema de Indicadores de Percepção Social, foi apresentada a Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. A pesquisa estima que, no mínimo, 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil. Destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. 89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes.

A ideologia patriarcal e machista que coloca a mulher como objeto de desejo e propriedade ficou evidente nos percentuais relativos à culpabilidade em casos de ocorrência de estupro. Segundo a pesquisa – presencial e realizada em 3.809 domicílios de 212 municípios – ainda é alta a tolerância à violência contra a mulher. A estarrecedora lógica segundo a qual a mulher não é vítima mas culpada fica patente com a alta concordância com a ideia de que “se as mulheres soubessem como se comportar haveria menos estupros” (58,5%). O resumo é dantesco: os homens não conseguem controlar seus apetites sexuais e são as mulheres, com seus decotes provocadores, as culpadas – não os estupradores. A mulher mereceria, portanto, ser estuprada para aprender a se comportar. Além disso, 63% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. 82% defendem que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

A pesquisa do IPEA cumpre um fundamental papel político e social num momento em que a sociedade brasileira vem sendo, paulatinamente, tomada por uma maré montante conservadora, cuja agenda, própria do medievo, massacra as mulheres, os gays, os índios, os negros. Os resultados dos estudos mostram que não está sendo travada a luta pela hegemonia na sociedade: por falta de linguagem, de aprofundamento das reflexões, estamos perdendo a luta no terreno das ideias, dos valores.

Inacreditável, por exemplo, que o Congresso Nacional discuta, em pleno Século XXI, o Estatuto do Nascituro, algo inacreditável, de um atraso monumental e que vai na contramão de qualquer missão civilizatória em curso. E por falta da batalha de ideias, antes feita de peito aberto, cai por terra a agenda iluminista, escapam pelos desvãos valores da Revolução Francesa. O Estado Laico precisa ser defendido: liberdade absoluta para todas as religiões, mas nenhuma deve se achar no direito de impor seus valores ao conjunto da sociedade. Nenhuma. A liberdade religiosa está assegurada na Constituição, mas é inadmissível proclamar que mulheres tenham seus corpos submetidos a desígnios medievais, como as religiões mais fundamentalistas têm feito, como o Estatuto do Nascituro quer.

Em pleno Século XXI, não se pode discutir mais a famigerada ‘cura gay’. É inaceitável pensar sobre o assunto. O debate da redução da maioridade penal é outra monstruosidade. Não está escrito, mas a redução é contra os jovens negros do Brasil. Em breve, estarão propondo a reedição do crime da capoeiragem, do crime do curandeirismo, a proibição de cultos de matrizes africanas. É preciso insistir para que os partidos, as organizações, os sindicatos, as associações, os governos enfrentem a agenda de valores, que façam a disputa da hegemonia, que não se contentem – embora seja essencial – com a materialidade da vida das pessoas. Que saibam o quanto é preciso ir além disso; o quanto é preciso cuidar de novos sonhos, como bem defendeu Emiliano José.

Em junho passado a juventude brasileira explodiu. É óbvio que iria explodir. Foram sinais de inquietação do mundo urbano, ainda não foi suficientemente discutido. Foi a explosão contra a imobilidade, em suas múltiplas dimensões, não apenas urbana, mas cultural, econômica, social. Todos aqueles que cultivam seriamente a ideia de casar socialismo e democracia, mesmo os que não se autoproclamam revolucionários, devem arregaçar as mangas para ganhar corações e mentes, trazer a lume a cidade invisível.

*Fábio Sena é jornalista e editor do Blog que leva seu nome.

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