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[Artigo]: Povos, comunidades tradicionais e a conservação da natureza

quilombola
A agricultura familiar é responsável pela oferta de cerca de 70% dos alimentos básicos para a população brasileira | FOTO: Ilustração/Incra |

Por Carleandro de Souza Dias*

A diversidade de gentes e naturezas que historicamente tem constituído o território latinoamericano e brasileiro é uma característica ao mesmo tempo bela e desafiadora. A beleza de identidades, culturas, religiosidades, traz desafios para as constituições políticas, acadêmicas, jurídicas, e até para as organizações não governamentais – mais acostumadas a trabalhar com as diversidades e as adversidades. Junto com os desafios, também somos privilegiados ao saber que temos uma das coisas mais preciosas do mundo, que é a essa pluralidade de naturezas, subjetividades, e ecologias diferenciadas, palco de novos e antigos saberes e sabores, que nos mostram outras maneiras de viver e estar no mundo.

Sem dúvidas, é no ambiente rural brasileiro que temos de forma mais vívida esses desafios, contrastes e vislumbres. No campesinato do país temos diversas formas socioidentitárias de organização social, compreendendo os movimentos sociais de luta pela terra e água, camponeses de fundo e fecho de pasto, catadores de coco babaçu na Amazônia ou de licuri e umbu aqui no nordeste, agricultores familiares e outras múltiplas representações. Muitas dessas identidades são partes do que se denomina Povos e Comunidades Tradicionais, sobretudo em ambientes ligados às políticas públicas socioambientais e jurídicas.

No âmbito dessas políticas, os direitos dos povos e comunidades tradicionais são garantidos através do Decreto 6040 de 2007 que institui a “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT”. Segundo este Decreto, a PNPCT tem como principal objetivo “promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.”

Dessa forma, várias estratégias para a promoção à cidadania e emancipação política e social foram conquistadas depois de muita luta e resistência dos povos tradicionais no campo e das cidades em busca de reconhecimento. O decreto reconhece como “Povos e Comunidades Tradicionais” os “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

Dentre estes, povos roma (ciganos), povos de terreiro, varzeiros, pescadores artesanais, povos indígenas e quilombolas, e demais subjetividades coletivas reconhecidas pela história de contribuições ao mosaico identitário do país e pelas maneiras tradicionais e inovadoras de convivência e resistência com a natureza e a sociedade. Tais relações com a natureza constitui uma forma ecológica, econômica e espiritualmente diferenciada. Esses aspectos têm sido estudados por ambientalistas, etnoecólogos, antropólogos, economistas, pedagogos, sociólogos, e muitos outros acadêmicos nas diversas áreas do saber.

Destaca-se a recém-premiada com o Nobel de Economia, Elionor Ostrom, que através de seus estudos sobre as formas de sociabilidade econômica dos povos e comunidades tradicionais no mundo, provou que a gestão dos recursos naturais pelas comunidades tradicionais eram mais eficientes do que as perpetradas pelo poder público ou pelas empresas capitalistas que negavam saberes e práticas localizadas. Ostrom, além de ter sido a primeira mulher a receber tal prêmio, colocou em evidência algo que muitos estudiosos das instituições comunitárias já sabiam em relação à economia e à ecologia política: o “ecologismo dos pobres” parece ter mais eficácia para a economia ecológica do que o capitalismo maquiado de verde das corporações e das medidas paliativas dos Estados-nações.

As formas de utilização da flora e fauna, os sistemas, regras e normas de sociabilidade que governam as relações pessoas-natureza nos espaços geridos pelas comunidades, além das contribuições simbólicas sobre a natureza, vista como um organismo vivo, contrapõe-se frontalmente à visão do sistema econômico vigente, fadado a crises cíclicas enquanto forma natural de manutenção e auto-reprodução. Ao passo que o capitalismo vê uma natureza morta a ser explorada, embalada e comercializada enquanto commodities e os territórios enquanto espaços de domínio, uso e lucro, o ambiente natural para os povos e comunidades tradicionais é lugar de vida e trabalho, ancestralidade, vivência, experiência e existência.

Não é só um discurso e um posicionamento político, mas antes de tudo, uma das poucas formas concretas de garantirem sua própria sobrevivência, identidade e pertencimento. Na esfera socioambiental, os saberes e práticas tradicionalmente repassadas são ferramentas importantes para as políticas e ações de conservação e preservação da natureza. Durante séculos, foram os povos tradicionais quem preservaram seus territórios, gerindo da melhor forma os recursos e a produção para a comunidade e para outras localidades.

A agricultura familiar, por exemplo, é uma das responsáveis pela oferta de cerca de 70% dos alimentos básicos para a população brasileira, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ameaças ao território como políticas desenvolvimentistas de modernização tecnológica ou implementação de infraestruturas de impacto como construções de barragens, incentivos ao agronegócio e transgênicos em detrimento da agroecologia e das sementes crioulas, bem como o descaso político das camadas sociais em desvantagem, onde a maioria dos povos e comunidades tradicionais se encontram, é um atentado socioambiental, uma forma cruel de etnocídio, e uma condenação explícita ao desenvolvimento saudável do planeta.

*Carleandro de Souza Dias é mestre em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental pela Universidade do Estado da Bahia.Desenvolve trabalhos no Centro Estratégico de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – Opará e Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações Socioambientais – NECTAS, ambos da Universidade do Estado da Bahia; membro do Núcleo de Pesquisa Ambiente, Sociedade e Sustentabilidade, da Universidade Estadual de Feira de Santana (NUPAS/UEFS).

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