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#Artigo: Brasil 2019, o cinema no ‘escurinho’ do Enem

Elizabete Gonçalves de Souza é professora da Rede Estadual da Bahia | FOTO: Divulgação |

Por Elizabete Gonçalves de Souza*

Para iniciar essa prosa recorro aos versos do poeta sertanejo Wilson Aragão que de forma brilhante anunciou/denunciou a ausência de equipamentos culturais para a maioria daqueles que residem no que se convencionou chamar de Brasil profundo.

O cinema que conhecemos/ fizemos ainda pequenos, foi aquele das sombras que projetávamos nas paredes das nossas casas em noite de lua; na ausência de luz elétrica a meninada se ajuntava e fazia das mãos asas e a imaginação voava alto. Teatro de sombras, cinema mudo no escurinho da noite do sertão do Brasil profundo, meninas e meninos representando pássaros, fantasmas envoltos em lençóis, bicho de chifre e tudo que a imaginação infantil fosse capaz de criar em noites enluaradas.

“A indústria cultural”, conceituada pelos filósofos Theodor Adorno (1903-1969) e Horkheimer, nos informa que no mundo capitalista tudo vira mercadoria e a arte não está livre dessa lógica e sendo assim a produção artística deve ser feita em série para gerar lucro. A sétima arte converte-se em produto de mercado, excluindo os meninos e meninas do Brasil profundo.

A sétima arte convertida em mercadoria transforma-se em privilégio para quem tem poder de compra. O cinema ficou segregado para os do Sul e Sudeste, para o asfalto, para frequentadores de Shopping Center. A cultura usurpada subtraída da maioria.

Milton Santos, na canção Notícias do Brasil, nos diz que “ficar de frente pro mar e de costas para o Brasil não vai fazer desse lugar um bom país”. Dizem que a vida imita a arte, mas o contrário também é verdadeiro, aqui o artista denuncia a divisão do Brasil em Norte e Sul, desenvolvido e subdesenvolvido, ricos e pobres.

Desconsiderando ou considerando esse contexto histórico geográfico, eis que em 2019 o Exame Nacional do Ensino Médio Enem, cobra de todos os meninos e meninas do Brasil, discutir exatamente uma expressão artística que foi negada à maioria da população, a discussão em questão é “A democratização do cinema“ e o cinema nesse caso refere-se a Sétima Arte, que eternizou momentos, ator, atrizes e lugares ao redor do mundo. Mas aqui se faz necessária uma pergunta, aquela que não se pode calar.

Quantos dos nossos meninos e meninas já assistiram aos clássicos do cinema nacional e internacional? Quantos já viram Tempos Modernos? O grande ditador? E o vento levou? Marighella do diretor brasileiro Wagner Moura, que foi proibido de rodar no Brasil? Bacurau, premiadíssimo ao redor do mundo que está em cartaz nos balcões iluminados dos cinemas nas grandes cidades? Quantos?

Talvez a resposta venha nas linhas dos versos do cantor poeta Wilson Aragão em seus versos “Esse tar de cinema eu não sei nem como é” e possivelmente veremos os meninos do Brasil serem ridicularizados nas chamadas “pérolas do ENEM”, possivelmente os meninos do Brasil profundo, aqueles que já fizeram cinema no escurinho do sertão e desconhecem os balcões iluminados, cheirando “artificialmente” a pipoca.

Talvez esses meninos devam/possam recorrer a Milton Santos e responder “a novidade é que o Brasil não é só litoral/ é muito do que qualquer zona sul/ tem gente boa espalhada por esse Brasil/ que vai fazer desse lugar um bom país/Aqui vive um povo que é mar e que é rio/ E seu destino é um dia se juntar”. Se juntar para pensar/ fazer cinema ao luar do sertão e também a Sétima arte na iluminada capital, de igual pra igual.

*Elizabete Gonçalves é professora da Rede Estadual da Bahia, mestranda pelo programa de Relações Étnicas e Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

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