Uma caverna situada entre os morros que separam as belas praias da Guarda do Embaú e Pinheira, na região de Palhoça, a cerca de 50km ao sul de Florianópolis, num local conhecido Vale da Utopia e integrante do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, abriga Vilmar Godinho, natural de Porto Alegre e que hoje vive em perfeita harmonia com a natureza na reserva ambiental.
Pelo celular o “Guardião do Vale”, como é chamado, conta ter resolvido se instalar na caverna no verão de 1990. “Fui com os amigos passar alguns dias na praia da Pinheira. Acabei conhecendo o Vale e curti muito o local”, conta ele, com fala serena. De acordo com Godinho, a caverna já teve um morador antes: o dono das terras viveu ali por um bom tempo e organizava encontros com amigos.
A ideia, na época, era organizar uma comunidade alternativa no local. “A terra é de propriedade de um escritor, Wilson Galvão do Rio Apa, que pertencia a um grupo de anarquistas. Na verdade, eles queriam pôr na prática essas experiências anarquistas, mas acabou não dando resultado, e então ficou o nome de Vale da Utopia. Depois disso teve uma mulher, uma artista que viveu por lá durante alguns anos. Quando cheguei, estava tudo abandonado, depredado e com muito lixo. Foi então que fiquei limpando, arrumando as coisas e permaneci na caverna”, contou o ex-artista plástico e publicitário ao TAB.
Guardião e aprendiz
Sob as rochas do morro foi construída uma pequena cabana de madeira com cerca de 4 metros quadrados. É ali que o “Guardião” dorme e se abriga do frio e da chuva há quase três décadas, desde que deixou sua vida e seus familiares em Porto Alegre. Ao lado da cabana ainda há um segundo cômodo no interior da caverna que serve como “sala de estar”, com direito a uma mesa de pedra esculpida pela própria natureza e bancos em madeira. A cozinha é um fogão a lenha.
Sobre sua dieta, Godinho afirmou que até agora não consegue ser 100% auto-sustentável. “Estou em constante aprendizado com a terra e encontro certas dificuldades aqui na área. Há muita queimada na mata e o solo é duro, então tem de trabalhar, cavar, colocar nutrientes e ter cuidados para os animais não comerem.” A base de sua alimentação é composta por frutas, legumes e verduras que ele mesmo planta em torno de sua moradia. Vez ou outra, Godinho dá uma escapada ao supermercado para comprar cereais, já na praia da Pinheira.
Quando se instalou na gruta, afirmou que costumava pescar e se alimentava de peixes e mariscos, mas virou vegetariano, o que facilitou um pouco sua adaptação. “Grande parte das frutas e verduras eu colho daqui da horta mesmo”, disse. Para matar a sede e fazer sua higiene pessoal, o ermitão tem a sua disposição, nas proximidades da caverna, uma fonte de água doce.
Questionado pela reportagem sobre como lida com a solidão, Vilmar afirmou que nesta época do ano (verão) é difícil se sentir sozinho em razão do movimento de turistas na região. “Tiro proveito deste tempo para me concentrar, meditar nas coisas que estão por vir. A solidão também alimenta a gente e faz parte desse processo. Não me sinto sozinho.” Já na temporada de inverno, Godinho confessa que fica abrigado na caverna. “Fico por aqui mesmo, apesar do frio, não vou para a Porto Alegre. Só vou à capital gaúcha uma vez por ano visitar meus irmãos.”
Tretas com a Justiça
Por viver no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, uma área de proteção ambiental, Vilmar enfrentou sérios problemas com a Justiça catarinense. O imbróglio começou em fevereiro de 2016, quando o órgão jurídico determinou que o homem desocupasse a caverna. Caso não aceitasse a ordem, teria que pagar uma multa de R$ 500 diários. Na época, o possível despejo causou revolta na comunidade local, porque os defensores e amigos alegavam que o estilo de vida de Godinho não prejudicava o meio ambiente.
O protesto realizado em abril de 2016 ganhou as redes sociais com a campanha “Deixem o Vilmar em paz”. Sobre a atual situação judicial, o Guardião afirma calmamente e em poucas palavras que “o processo jurídico continua… está lá, parado”. Ao celular, parece não dar muita atenção ao fato.
Em uma de suas postagens no Facebook (sim, o moderno “homem das cavernas” tem conta na rede social mais popular do mundo e possui mais de mil seguidores), Vilmar rebate a Justiça catarinense, que o acusa de obter recursos naturais do Parque Estadual, como lenha e água para o sustento. “Crime ambiental é a falta de saneamento básico nas comunidades locais”, contestou o ambientalista. Além de viver na gruta, Vilmar Godinho costuma transferir o que sabe sobre os cuidados com o meio ambiente a estudantes de escolas e universidades da região que visitam o Vale da Utopia.
Profissão: editor de jornal
Preocupado com a questão ambiental, Godinho resolveu criar em 1994 um jornal comunitário chamado “Espinheira”. A ideia inicial, segundo uma das colaboradoras do periódico, a conterrânea e arquiteta Elizabeth Albrecht, “era fazer um jornal que protegesse (como um espinheiro protege) a comunidade e as agressões ao meio ambiente”.
De 1994 a 2007 as edições eram mensais. O jornal parou de circular e voltou em meados de 2016, sob o nome “Espinheira Santa”, venerando a cura da sociedade e os avanços à proteção ambiental. No entanto, em 2019 foram distribuídas gratuitamente apenas duas edições. “A ideia é lançar para 2020 quatro edições, duas a cada semestre”, afirmou a arquiteta, que reside na praia da Pinheira há mais de 30 anos. Albrecht afirmou que conhece Vilmar desde que ele se instalou no Vale da Utopia e lembra do dia em que o “homem das cavernas” conquistou seu primeiro celular.
“Foi muito engraçado porque a gente acabou ajudando durante muito tempo no jornal. É o Godinho que coordena, edita, avalia as matérias escritas pelos colaboradores, mas ele não tinha telefone celular. Nós sempre brincávamos com ele, dizendo: ‘meu Deus, Vilmar, quando nós precisamos falar algo contigo, a gente precisa subir o morro da Pinheira, descer, ir até o Vale da Utopia e entrar na caverna para conversar. Por favor, compra um telefone!'”, contou a gaúcha, que teve um filho com Godinho, Huanan J. Albrecht Godinho, hoje com 19 anos. O jovem mora na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e estuda na Universidade Federal de Santa Catarina.
Hiper conectado
O jornalista Dagoberto Bordin, diretor da Associação Rádio Comunitária Pinheira, afirma que Vilmar Godinho “vive em perfeita harmonia com a natureza, ele é um profeta”. Bordin o conhece desde os anos 1990. “Uma vez por semana ele sai da caverna, desce o morro e vem aqui ao jornal, usa o computador e edita as matérias em conjunto com a equipe, todos voluntários”. Muito próximo ao colega e amigo, Dagoberto Bordin lembra de uma noite, em 2004, quando recebeu um telefonema de Porto Alegre. Eram os familiares de Godinho comunicando a morte de sua mãe, que sofria de Alzheimer.
“Ele ainda não tinha telefone, então fui caminhando à noite pelos morros até a caverna dele na companhia do meu cão, um Border Collie. Estava chovendo muito e, quando chegamos ao Vale da Utopia, Vilmar não estava na caverna. Ao retornar para vila, encontrei ele no jornal, em uma antiga sala que alugávamos naquele tempo. Foi aí que o avisei sobre o falecimento da mãe”, recordou emocionado o amigo. Mesmo vivendo tanto tempo isolado em meio à Mata Atlântica, Vilmar Godinho nunca foi picado por cobras, escorpiões e outros animais peçonhentos. “Ele tem uma sintonia maravilhosa com esses bichos”. Com informações do UOL.