Mais de 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados. Isso é o que mostra o estudo inédito divulgado nesta quinta-feira (16) pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Segundo o levantamento, operam dentro de terras quilombolas, empreendimento relacionados às obras de infraestrutura, exploração mineral, atividades de agricultura e pecuária, e também imóveis rurais particulares.
Ao todo, são 485 quilombos registrados no Brasil. Deste total, 347 (70%) encontram-se em processo de titulação. Os territórios quilombolas ocupam 3,8 milhões de hectares, o que corresponde a 0,5% de todo território nacional.
O primeiro censo dessa população foi realizado pelo IBGE em 2022 e divulgado em julho do ano passado.
O Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas, ou seja, que têm laços históricos e ancestrais com a comunidade e terra em que vivem. A maioria está localizada na Bahia, Maranhão e no Pará.
O diagnóstico realizado pelo ISA e o Conaq detalha que a infraestrutura, as atividades de mineração e os cadastros de imóveis rurais são os três principais eixos que exercem pressão nos quilombos (entenda mais abaixo).
“Os resultados mostram que praticamente todos os quilombos no Brasil estão impactados por algum vetor de pressão, evidenciando a violação dos direitos territoriais das comunidades quilombolas”, avalia Antônio Oviedo, pesquisador do ISA e pós-doutor em políticas públicas e gestão ambiental.
Os territórios quilombolas que estão na região Centro-Oeste são os mais afetados, registram 57% da área total atingida na região. Seguido do Norte com 55%, Nordeste e Sul com 34%, e Sudeste com 16%.
Obras de infraestrutura
Entre os quilombos mais prejudicados nesse quesito, está o Kalunga do Mimoso, em Tocantins. Segundo dados do IBGE, 379 pessoas vivem nessa comunidade.
Hoje, 100% da terra está sobreposta com três empreendimentos planejados:
uma rodovia (BR-010 em trechos no TO e GO);
uma ferrovia (FIOL, EF-334);
uma hidrelétrica (São Domingos).
Outros quilombos que também estão com 100% do território ocupado por obras de infraestrutura:
Alto Trombetas I e II (Pará)
Gurupá Mirim (Pará)
Jocojo, Flexinha (Pará)
Carrazedo, Abui (Pará)
Parana do Abui (Pará)
Tapagem (Pará)
Sagrado Coração (Pará)
Barra do Aroeira (Tocantis)
Atividades de mineração
Em todo país, 781 mil hectares de terras quilombolas estão pressionados por 1.385 requerimentos minerários, ou seja, por concessões para exploração mineral.
Os quilombos mais tensionados estão no Centro-Oeste, com 35% da área afetada. Em seguida está a região Sul (25%), Sudeste (21%), Norte (16%) e Nordeste (14%).
O quilombo Mata Cavalo, no Mato Grosso, está com 100% território ocupado por atividades de exploração mineral.
Já em Goiás, o território Kalunga, localizado na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros soma mais de 180 requerimentos minerários. A sobreposição é de 66% da terra quilombola.
Cadastro Ambiental Rural (CAR)
Segundo a pesquisa, mais de 15 mil imóveis rurais estão cadastrados em quilombos.
As regiões Sul (73%) e Centro-Oeste (71%) são as mais atingidas pelos imóveis rurais privados.
Outra regiões também apresentam alta taxa de sobreposição entre os CARs e os quilombos, como a região Sudeste (64%) e a região Norte (19%).
No Pará, o quilombo Teófico (99%) e a comunidade Erepecuru (95%) estão com quase toda a área sobreposta com imóveis rurais cadastrados.
Problemas do CAR
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um instrumento nacional para registro de imóveis rurais que tem como finalidade integrar as informações ambientais de todas as propriedades do Brasil.
O procedimento é realizado junto aos órgãos estaduais de meio ambiente, que devem prover assistência técnica e sistemas eletrônicos para o cadastro em três segmentos:
imóveis rurais (CAR-IRU)
assentamentos (CAR-AST)
povos e comunidades tradicionais (CAR-PCT) — que é a categoria em que se enquadram os quilombos.
Ainda segundo a análise, as comunidades quilombolas “têm recebido orientações incorretas de empresas terceirizadas ou mesmo dos órgãos estaduais, que têm orientado a inscrição em categorias distintas: de imóvel rural ou assentamentos.”
“O cancelamento de cadastros de imóveis rurais e de requerimentos minerários que acometem sobre os quilombos, além de consulta com as comunidades sobre obras de infraestrutura ou projetos que possam degradar a terra é fundamental para a preservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e também para o modo de vidas das pessoas quilombolas”, afirma um dos responsáveis pelo estudo, Antônio Oviedo, pesquisador do ISA e pós-doutor em políticas públicas e gestão ambiental.
Um dos problemas apontados pelo estudo com relação aos registros rurais, é o fato do sistema para inscrição de povos e comunidades tradicionais não estar disponível em todo Brasil. Assim, as comunidades quilombolas e tradicionais são excluídas dessa política pública.
No Brasil, o direito das comunidades quilombolas permanecerem em seus territórios está previsto na Constituição Federal.
O levantamento cita algumas regiões que estão promovendo métodos próprios para contornar a falha no sistema de inscrição.
No Maranhão, desde 2018, o registro e povos e comunidades tradicionais é realizado através de articulações entre Organizações Não Governamentais (ONGs), sindicatos rurais e as comunidades quilombolas.
Já no Pará, o governo estadual criou a mesa de negociação quilombola, institucionalizando um espaço de diálogo no tema.
No Tocantins, as próprias lideranças quilombolas, com apoio da Coordenação Estadual Quilombola (COEQTO), têm realizado trabalhos de identificação para a inscrição.
“Em estados que não possuem um módulo de cadastro próprio, é importante que utilizem o sistema nacional para que quilombos e outras comunidades tradicionais possam cadastrar seus territórios”, orienta Francisco Chagas, membro do Conaq.
Segundo dados do MapBiomas — uma rede colaborativa de dados desse segmento —, em 38 anos os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 17% no mesmo período.
“As florestas, a água, os animais e toda forma de vida são cuidados meticulosamente pelos quilombolas, seguindo os ensinamentos ancestrais, pois todas as vidas importam em um quilombo”, explica Francisco Chagas, membro da Conaq.
O estudo constata um “desmonte das políticas de gestão territorial” e ações de comando e controle dos territórios quilombolas.
“A União e os governos estaduais favorecem atividades ilegais, oportunistas e de alto risco ambiental no interior desses territórios. Reduzir os mecanismos de avaliação dos impactos e de consulta livre, prévia e informada sobre os vetores estudados – obras de infraestrutura, cadastros irregulares de imóveis rurais e requerimentos minerários – representa um modelo inadequado para o desenvolvimento e gestão territorial dos territórios quilombolas”, avalia a pesquisa.
Ainda segundo os pesquisadores o modo de uso dessas terras pode “impedir o Brasil de cumprir suas metas de proteção ambiental e resiliência climática assumidas em acordos internacionais.”
Em setembro do ano passado, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, anunciou durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nos Estados Unidos, que o compromisso do Brasil no âmbito do Acordo de Paris, é de reduzir as emissões dos gases do efeito estuda em 48% até 2025 e 53% até 2030.
O que diz o governo
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirmou que trabalha na implantação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ), com o objetivo de “promover a gestão sustentável dos territórios quilombolas, com preservação ambiental, desenvolvimento socioeconômico e fortalecimento cultural das comunidades”.
Segundo o MMA, essa política lançada em 2023 conta com planos formulados, aprovados, geridos e monitorados pelas próprias comunidades quilombolas. “Usos, costumes e tradições de cada território serão respeitados”, disse a pasta no comunicado.
Já o Ministério da Igualdade Racial informou que coordenada, ao lado do do MMA e do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ), voltada à proteção do território e de atividades que promovem a degradação ambiental.
A pasta acrescentou que “está em desenvolvimento” um projeto para capacitação das comunidades quilombolas a fim de que elas “se apropriem do instrumento do Cadastro Ambiental Rural, definam os limites do seu território, bem como o zoneamento, e façam, elas mesmas, a retificação permanente do seu cadastro, em uma modalidade de cadastro coletivo.”
Ainda segundo o Ministério, dessa forma o projeto busca também “ampliar o número de territórios quilombolas cadastrados no CAR, capacitar agentes quilombolas para serem formadores e replicadores da capacitação nos territórios e articular junto aos estados da federação a implementação do módulo CAR para Povos e Comunidades Tradicionais.”
O Ministério da Igualdade Racial destacou também a importância do CAR para as comunidades quilombolas e reforçou que a ação contribui “no cumprimento de metas de proteção ambiental e resiliência climática assumidas pelo Brasil em acordos internacionais.” As informações são do site G1.