O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), nesse primeiro ano de governo, parou a reforma agrária e as demarcações de terras indígenas e quilombolas. Paralelamente, sendo coerente com seu discurso de campanha, assinou, em dezembro, medida provisória que escancara o caminho para tornar legal terras griladas, principalmente na Amazônia. Paralelamente. Essas ações, demonstram a fidelidade do governo com os ruralistas.
Em 10 de dezembro, Bolsonaro assinou a medida provisória 910, que dá espaço para a privatização de terras públicas invadidas ilegalmente até o final de 2018. Para virar lei, é preciso a aprovação no prazo máximo de 120 dias pelo Congresso, onde terá o apoio da bancada ruralista. É a segunda anistia à grilagem dos últimos anos. Em 2017, o governo Michel Temer (MDB) já havia estendido o prazo para a regularização de terras públicas invadidas de 2004 para 2011.
A nova MP também estabelece que o Incra (órgão federal de terras) não exigirá vistoria prévia para regularizar imóveis de até 15 módulos fiscais (de 75 hectares a 1.650 hectares, dependendo do município). O limite anterior era de 4 módulos fiscais (20 ha a 440 ha). Ao justificar a medida, o governo afirma que a medida beneficiará 300 mil famílias instaladas em terras da União, principalmente em projetos de reforma agrária.
Assegura também que fará vistoria caso o imóvel esteja embargado por infração ambiental ou tenha suspeita de outras irregularidades. Apesar do discurso oficial de que as mudanças favorecem o pequeno produtor, a MP 911 foi criticada por organizações que defendem a reforma agrária, como a CPT (Comissão Pastoral da Terra), e elogiada por entidades ligadas ao agronegócio, caso da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).
Para a CPT, a MP fortalece a aliança de Bolsonaro com o agronegócio ao mesmo tempo em que não inclui a demarcação de terras, um dos principais focos de conflito por terras. No documento Perspectivas 2020, a CNA afirma que a medida vai aumentar a segurança jurídica dos produtores que atuam na Amazônia Legal. A entidade também espera que Bolsonaro avance em sua promessa para criar legislação que permita agricultura mecanizada e pecuária em terras indígenas.
Presente aos grileiros
Integrante do Grupo de Trabalho Terras Públicas e Desapropriação, do Ministério Público Federal, o procurador da República Marco Antonio Delfino afirma que “a MP 910 é o maior presente do Natal para os grileiros de todos os tempos”. “Nunca houve nada tão escandaloso, nada que fizesse tão jus ao mantra de que o crime compensa do que a MP 910”, diz Delfino, lotado em Dourados (MS), região com o maior número de disputa de terras entre indígenas e fazendeiros. “Tanto do ponto de vista conceitual quanto de dano ao patrimônio, nunca houve algo nessa escala.”
Para exemplificar a generosidade da MP com a grilagem, Delfino cita a possibilidade de pagar terras públicas invadidas com preços de até 40% do valor de mercado e linhas de crédito para quem for regularizado pelas novas regras. Isso porque o valor é calculado pela tabela de preços do Incra, bem abaixo do mercado de terra. “Imagine a seguinte situação: em dezembro de 2018, no sul do Amazonas, uma pessoa adquire 1.500 hectares a R$ 1.000 o hectare. Na mesma data, o grileiro expulsa populações tradicionais, constrói residências na área e terá, via de regra, regularizada por R$ 600 mil. Ou seja, o cidadão honesto paga R$ 1,5 milhão e o grileiro paga R$ 600 mil.”
Com relação ao crédito, Delfino afirma que, como os títulos são concedidos com cláusulas resolutivas (a escritura é emitida antes do pagamento total), o imóvel poderá ser usado como garantia para empréstimos bancários. “Quantos brasileiros com imóveis financiados têm a possibilidade de usá-los como garantia bancária? Nenhum. Mas o grileiro vai poder usar uma propriedade que não foi consolidada”, compara o procurador. “A pergunta que se faz é óbvia: e se não pagar? Aí a população fica com duplo prejuízo: o desmatamento e a perda de biodiversidade e dano ao erário, porque a maior parte desses empréstimos é público”.
Reforma agrária suspensa
Enquanto a anistia à grilagem avança, os projetos federais de assentamento estão parados no Incra.
Documento do Incra obtido pela Folha traz 289 processos de desapropriação para reforma agrária com futuro incerto, alguns que se arrastam desde 1997. O governo federal emitiu Títulos da Dívida Agrária (TDA), usados para indenizar os proprietários, mas a disponibilização para reforma agrária ainda depende da indenização das benfeitorias, feita à parte.
Esses imóveis somam 478 mil hectares, com capacidade para abrigar 15.692 famílias. Para pagar as benfeitorias, seria preciso desembolsar R$ 164,7 milhões. Sem isso, o Incra não obtém a imissão na posse, concedida pela Justiça e necessária para iniciar os projetos de reforma agrária. Esse quadro não deve se alterar em 2020, já que a previsão orçamentária do Incra para aquisição de terras enviada ao Congresso é de apenas R$ 12,3 milhões. O Incra informou que a obtenção de imóveis está paralisada devido à “insuficiência orçamentária, conforme decisão da presidência do Incra em 27 de março deste ano”.
Segundo a nota, a medida evita “expectativas de compromissos que podem não ser atendidos” e que o prosseguimento das aquisições “está condicionado à disponibilidade orçamentária”. Além disso, conforme a Folha revelou em novembro, o Incra dispõe de 66 projetos de assentamento para reforma agrária, mas nenhuma família foi regularizada nesses locais em 2019. Somados, esses projetos têm capacidade para 3.862 famílias. Sobre esses projetos de reforma agrária, o Incra também citou restrições orçamentárias para dar continuidade, mas afirmou que o processo de assentamento seria retomado em 2020.
Com apenas R$ 39 milhões para a consolidação de assentamentos rurais, o orçamento do Incra não indica retomada. Levando em conta o custo médio de R$ 61,8 mil por família (valor de 2014, o ano mais recente disponível no site Incra) esse valor seria suficiente para assentar 631 famílias. A reportagem pediu entrevistas com o presidente do Incra, Geraldo José de Melo Filho, e com o ouvidor agrário nacional, ocupado interinamente por Cláudio Braga, mas a assessoria de imprensa do órgão disse que eles não se pronunciariam.
Ligado ao agronegócio, Melo Filho está no cargo desde outubro. Seu antecessor, o general João Carlos Jesus Corrêa, foi demitido por pressão do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, o ruralista Nabhan Garcia. Ele defende a desistência dos processos de desapropriação para reforma agrária, proposta que sofria resistência do militar. De janeiro até 13 de dezembro, o Incra afirma ter homologado 5.132 famílias como beneficiárias da reforma agrária. Trata-se do terceiro número mais baixo dos últimos 25 anos e se refere a processos antigos de regularização.
Já a demarcação de terras indígenas e quilombolas foi zero em 2019. Antes e depois de eleito, Bolsonaro tem reiterado que não assinará nenhuma criação de terra indígena, em outra decisão alinhada com a bancada ruralista. No início do mandato, Bolsonaro tentou transferir a demarcação de terras da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura, mas a mudança foi barrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
O órgão indigenista está sob o comando do delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier da Silva, outro apadrinhado dos ruralistas. “Antes, o processo de demarcação era técnico, mas a decisão de demarcação era política”, afirma Delfino. “Agora, o que se tem é uma politização do processo inteiro. Há um movimento para colocar pessoas sem experiência, que não são antropólogos. A ideia é desmontar o processo desde o início”. As informações são da Folha.