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#Chapada: Religião exclusiva da região, Jarê sobrevive pelas mãos de guardiões; um dos curandeiros morreu recentemente

Na zona urbana de Lençóis resta apenas um curandeiro, o Pai Pepê | FOTO: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê |

Com Gildasio de Oliveira, o ‘Pai Gil de Ogum’, morto aos 58 anos, também foram enterrados segredos do jarê, religião que só existe na Chapada Diamantina. Sem Pai Gil, aqui ficariam 300 filhos de santo órfãos, o destino incerto de um dos mais tradicionais terreiros da região e uma responsabilidade que unia os presentes no velório – o jarê.

Na noite de 17 de março, Lençóis parecia ainda mais silenciosa, a despedida de Pai Gil, também conhecido por ‘Daso’, falecido de madrugada, despertou uma comoção instantânea na cidade e, onde houvesse iniciados na religião, o sentimento era o mesmo. A causa do óbito não foi divulgada, mas a suspeita é de que ele tenha sido vítima da covid-19. Pai Pepê, 20, o mais novo pai de santo local, pressentiu, após o enterro, um período de luta. “Me vejo como guardião”, diz.

Hoje, na zona urbana de Lençóis resta apenas um curandeiro, o Pai Pepê. Nos distritos das zonas rurais da cidade, são seis. “No jarê me fiz, me criei, e nele eu morrerei”, anuncia Pepê. O pai de santo foi feito na religião ainda pequeno, num terreiro na vizinha Utinga, também na Chapada.

Aos três dias de vida, “apanhou” pela primeira vez do santo. Seus olhos de recém-nascido não tinham expressão e os médicos diziam que “aquilo não era coisa para a medicina”. Sobreviveu sem viço infantil, apático, dormindo pelos cantos.

A avó, que sempre sonhava com o verde do orixá Oxóssi, desconfiava que aquilo era “coisa de encantado”. Quando Pepê completou 7 anos, pegou o neto pelo braço e foram a um terreiro. No local, ele incorporou o Preto Velho, o que confirmava a necessidade de iniciação. Aos 12 anos, ele virou pai de santo. Dois anos depois, abriu o próprio terreiro, o Castelo de Ogum. Os mais velhos se ajoelhavam para beijar a mão da criança escolhida.

Diferentemente do Candomblé, no jarê, religião que mescla elementos afro-brasileiros e indígenas nos cultos espirituais, os cargos são menos rígidos, assim como a linguagem. Um pai ou mãe de santo constantemente são referidos como um curador e vice-versa. A diferença é que um curador não aprende o dom da cura, fundamental desde o princípio do Jarê. Ele é designado e incorporado pelos encantados, como também são chamados orixás e caboclos, a fazê-lo.

Pedro Gabriel dos Santos Jesus, o ‘Pepê’, tem 20 anos | FOTO: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê |

Do garimpo a uma religião que é símbolo da terra
Às quartas-feiras, Pepê põe-se diante do Peji, espécie de altar, e pede pelos filhos de santo. Reunidos em grupos pequenos, ele e outros religiosos às vezes recebem a visita de encantados. Em momentos como esse, Pepê veste roupas coloridas – as favoritas são o verde e vermelho. Os curandeiros prestam atualmente apenas serviços espirituais urgentes e os religiosos batem jarê em grupos pequenos, por conta da pandemia.

No fundo do Palácio de Ogum, os ornamentos e a rotina religiosa sintetizam o porquê de o jarê não ser classificado apenas como Candomblé. O jarê é considerado uma vertente do Candomblé trazido pelos africanos escravizados ao Brasil e constituído ao nosso modo.

“Costumamos dizer que todas as religiões de matrizes afro-brasileiras são aparentadas. Adeptos de diferentes religiões podem transitar por variantes com facilidade”, explica o antropólogo Gabriel Banaggia, que estudou a religião para o doutorado pelo Museu Nacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O jarê é lapidado sob a liderança de negras nagôs, livres ou não, que chegam a Lençóis, no início do século XIX. Elas cultuavam os orixás, mas outras entidades apareciam e nos cultos foram ficando. Assim, nascia a religião, também marcada pelo lugar quase intocado que era Lençóis, com profunda relação com a natureza.

A influência católica também se fez presente e, até hoje, há iniciados no jarê devotos de santos. Era o caso do próprio Pai Gil, que se curvava para reverenciar o Senhor dos Passos e carregava, há 34 anos, o andor do santo na festa dedicada a ele em Lençóis, sem deixar de receber gente de toda espécie à sua porta em busca de curas para o corpo e para alma. Ancião mais velho sofre de Alzheimer

É a descoberta de minas preciosas na Chapada que, ao atrair garimpeiros, aprofunda a relação da população local com o jarê. Os encantados, seres que deixaram o mundo material, sem registros sobre suas mortes e se “encantaram” com uma nova potência de vida, são vistos por religiosos como caminhos. Essa também era uma época de profundo afastamento de serviços básicos. Os curadores, muitas vezes, eram os únicos capazes de manifestar a cura.

O último levantamento da Associação Filhos de Ogum, de 2015, mapeou 40 terreiros em cinco cidades da Chapada – 14 deles em Lençóis e o restante em Andaraí, Morro do Chapéu, Itaetê e Utinga. “Não levantamos o fechamento, mas têm duas questões que mudaram a cabeça de muita gente: os jovens não querem dar continuidade e o movimento das igrejas evangélicas aqui”, conta o presidente da Associação, Sandoval Amorim, filho de um dos maiores líderes do jarê, o falecido ‘Pedro de Laura’.

Fortalecimento do cristianismo mudou a cabeça de ex-adeptos do jarê
As datas de cerimônias ou noites de “bater jarê”, como dizem os religiosos – alternam. Há sempre dança e atabaques que despertam as entidades. Numa só noite, as celebrações duram até dez horas, podem ser repetidas dois, ou três dias, e se fazem ouvir pela cidade. No passado, os mais antigos lembram de nove dias de festividade, com dezenas de encantados descendo no corpo dos religiosos. As festas para Cosme e Damião, em setembro, e Santa Bárbara, em dezembro, são as maiores.

Os terreiros ou casas de jarê, espaços onde as cerimônias religiosas acontecem apenas uma vez por ano em reverência a Cosme e Damião, costumam ser cercados por panos coloridos e abrigar pejis com imagens de santos católicos, caboclos e orixás iluminadas parcamente por velas.

As pessoas ouvidas concordam ao dizer que o desinteresse dos mais jovens em responsabilidades – guiar um terreiro e ficar entregue à vontade do desconhecido exigem determinação – e o avanço das religiões protestantes impactaram o jarê.

Nas cinco cidades onde se mapeou o jarê, menos de 1% da população disse professar religiões afro-brasileiras. De 2000 a 2010, o número de evangélicos saltou de 23,3 mil para 33,2 mil, mostra o IBGE. Essa prevalência começa nos últimos 15 anos, dizem moradores.

A religião surgiu na Chapada Diamantina em meados do século XIX | FOTO: Divulgação |

Cantigas antigas do jarê são resgatadas
Entre março e abril deste ano, pesquisadores visitaram noves lideranças religiosas da cidade. Eles foram convidados, também, a cantar velhas cantigas do jarê. Talvez fossem uns dos poucos com esse repertório. A ideia daqueles encontros tinha sido de Sandoval Amorim. “Virou um acervo muito grande, uma forma de preservar essas cantigas, as vozes, as variações”, acredita Paula Zanardi, antropóloga.

Não é porque o jarê faz parte da história da Chapada Diamantina que tenha passado, ou passe, intacto ao racismo e à intolerância religiosa. Ao contrário, “é um processo longo de afirmação de si”, narra Paula.

No livro ‘Torto Arado’, do escritor e geógrafo Itamar Vieira Junior, a narrativa, ambientada em uma área quilombola fictícia da Chapada, põe a religião num ponto central. E a ela recorrem os moradores em momentos de desespero. Zeca Chapéu Grande, pai das personagens principais, é o grande líder, de modo que Belonísia e Bibiana crescem “entre loucos e preces, entre gritos e xaropes, entre velas e tambores”.

Depois da morte de Zeca, no entanto, a tradição do jarê em Água Negra enfraquece. O evangelismo chega e converte a cabeça de ex-iniciados. O último capítulo do livro é narrado, inclusive, por uma encantada chamada Santana Rita Pescadeira, que não tem aparecido nas cerimônias de Jarê.

A força da ancestralidade é o que mantém o presente e o passado conectados. Silenciados os atabaques em Água Negra, os encantados tomam distância, mas ainda estão ali, porque forças não morrem.

Era noite de bater jarê para Cosme e Damião, há dois anos, quando o ancião Cosminho, com a mente embaçada pelo Alzheimer, mostrou que assim é. Todos cantavam para Ogum e estranharam ao vê-lo se levantar da cadeira. Os filhos admiraram ainda mais, pois o pai parecia fraco segundos antes. Mas ali estava ele, emprestando seu corpo para um encantado e rodopiando como se nenhum mal turvasse seu horizonte. Jornal da Chapada com informações de Correio 24 horas.

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