O Conjunto Habitacional 27 de abril, no bairro do Doron, em Salvador, é diferente de todos os outros da localidade: as donas dos 80 apartamentos são todas mulheres e trabalhadoras domésticas. Como nome alusivo ao Dia Nacional das Domésticas, o condomínio é formado por quatro blocos. Cada prédio recebeu o nome de ex-diretoras fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia (Sindoméstico-BA). Maria José Alves, Maria das Graças e Teófila Nascimento foram homenageadas após a morte por causa da luta pelo direito das trabalhadoras no estado.
O nome do quarto prédio também homenageia uma trabalhadora doméstica, Lenira Carvalho. Essa, pernambucana, mas que teve atuação inspiradora para o movimento sindical na Bahia. No condomínio, os relatos das moradoras sobre situações vividas no ambiente de trabalho são semelhantes. As lembranças são do passado marcado por humilhações e ameaças. “Eu conheci a liberdade depois que a vizinha da minha patroa me ajudou a fugir, isso tem anos. Se não fosse por ela, hoje eu seria uma Madalena”, conta a doméstica e cuidadora de idosos, Valdirene Boaventura, moradora do condomínio.
Madalena Santiago da Silva, citada pela doméstica, foi resgatada de uma situação análoga à escravidão, em 2021, após trabalhar 54 anos sem receber salário. A história da doméstica repercutiu após ela afirmar, durante entrevista à TV Bahia, que tem medo de pegar na mão de pessoas brancas. Após tantas situações que trouxeram decepções com o trabalho de doméstica, as moradoras do condomínio em Salvador contam que o momento de felicidade chegou em suas vidas quando conseguiram conquistar um lar seguro.
A construção do Conjunto Habitacional 27 de Abril foi concluída em 2012, através do Programa Casa da Gente, do governo estadual. O empreendimento é resultado de uma luta de sete anos do Sindoméstico-BA e foi, especialmente, destinado às trabalhadoras domésticas, com renda familiar de zero a três salários mínimos. “Eu brinco que esse apartamento foi um pagamento, um reconhecimento por tudo que passamos. As histórias de todas as moradoras são bem semelhantes”, revela Valdirene Boaventura.
A seleção de beneficiárias dos apartamentos foi realizada pelo sindicato e obedeceu critérios como: trabalhadora com a carteira de trabalho assinada, moradora de aluguel ou na casa dos patrões. Dos 80 apartamentos, 55 foram destinados a trabalhadoras domésticas cadastradas pelo Sindoméstico-BA e as outras 25 são mulheres cadastradas pela Conder, que também são domésticas profissionais. Ainda antes da inauguração, em 2011, o projeto foi premiado com o Selo de Mérito da Associação Brasileira de Companhias e Agentes Públicos de Habitação (ABC), durante o Fórum Nacional de Habitação de Interesse Social, em Brasília (DF).
Os apartamentos contam com dois quartos, cozinha, banheiro e área de serviço. Todos registrados nos nomes das mulheres. “Algumas são casadas, moram com os maridos e filhos, mas todos os apartamentos são registrados nos nomes das mulheres”, conta a moradora e uma das representantes do sindicato, Maria do Carmo. Laiara Oliveira não é doméstica, mas mora no apartamento da mãe, Valdete Oliveira Barbosa, de 59 anos. A dona do imóvel trabalhou por anos como doméstica e atualmente reside na Ilha de Itaparica, na Região Metropolitana de Salvador.
“Minha mãe começou novinha e trabalhou por anos. Ela parou após problemas na visão devido ao contato com muito vapor”, contou. “Esse apartamento foi o pagamento por todo trabalho duro dela”, disse Laiara, enquanto escolhia e mostrava fotos da mãe. Junto aos quatro prédios também há uma creche, um parque para crianças e estacionamento. Valdirene Boaventura conta que a construção da creche foi a novidade que ela mais comemorou. No entanto, 10 anos após a inauguração, as atividades ainda não começaram por falta de documentações.
De acordo com o sindicato, existem cerca de 25 crianças que moram no condomínio, com idades de creche. A categoria afirma que a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER) ainda não autorizou o funcionamento da unidade. O g1 entrou em contato com a companhia para saber o motivo da demora da autorização para o funcionamento da creche, mas não recebeu respostas até a última atualização desta reportagem.
‘Comia a sobra da família’
Projetos e expectativas marcaram a saída de Valdirene Boaventura da cidade de Camacan, no sul da Bahia, para Salvador. Para ela, deixar o município do interior baiano significaria uma nova vida de dedicação aos estudos e formação da família na capital baiana. No entanto, a realidade na nova cidade foi de uma rotina de humilhações, agressões e ameaças.
Valdirene ainda relembra o que a motivou deixar Camacan. Ela foi abusada sexualmente, quando criança, pelo marido da ex-patroa. “Eu contei para ela [a patroa] e ela me bateu. Fui devolvida para a minha mãe, que não tinha condições de cuidar de mim e de meus irmãos”, disse a doméstica.
A chegada em Salvador aconteceu anos depois. Já adolescente, ela foi mantida em cárcere privado após pedir voltar para Camacan. O motivo: descumprimento de promessas como pagamento de salário e matrícula em uma escola. “Eu tive que fugir após um vacilo da minha patroa, passei por um buraco que tinha no estacionamento. O apartamento fica na Federação e toda vez que passo pelo Vale da Muriçoca eu falo que ali é o caminho da minha liberdade, foi por onde passei”, relembra.
“Eu não posso dizer que eu apanhei, mas fui muito humilhada, ameaçada, trancada no quarto. O sindicato me ajudou muito, isso foi em 1996 e o processo foi arquivado”, conta Valdirene. A doméstica lembra que ainda foi colocada como a culpada durante a audiência. “Eu ainda tive que ouvi a promotora falar: ‘Esse é o preço que paga quem quer ajudar essas meninas do interior’. Ela não queria me ajudar, ela me explorou, me enganou”, reforça. Maria do Carmo, já aposentada, mas que trabalhou desde os 10 anos como doméstica, deixou Cruz das Almas, no recôncavo baiano, com a mesma esperança. No entanto, em Salvador, a realidade foi semelhante a de Valdirene.
“Eu comia a sobra da comida da família que me pegou aqui em Salvador. Vi um dia ela raspando os pratos colocando pra eu comer. Tinha até cuspe no prato”, lembrou. Maria do Carmo conta que, na ocasião, negou o prato de comida e disse que não iria mais se alimentar no local. “Eu falei para ela que onde eu morava, quem comia o resto da comida era os porcos. Ela me disse que os mendigos que comiam assim, mas eu não era mendiga”. A situação mudou quando Maria do Carmo fez uma greve de comida por 15 dias.
“O marido da minha patroa viu que eu não estava comendo, nem bebendo água e brigou com ela. Falou que eu não ia mais passar por isso. Eu não sei como aguentei tanto tempo sem comer. Me arrastei pelo chão e bebi água quando já estava desesperada”, relembra a aposentada. Durante os 30 anos em que trabalhou como doméstica, Maria do Carmo passou por vários episódios de humilhações. Ela lembra que já foi demitida porque apareceu com um nódulo no peito.
“A moça que eu trabalhava disse que não ia ficar comigo porque eu estava doente. Uma outra me contratou, no primeiro mês foi tranquilo, mas depois não quis mais deixar eu fazer as revisões da cirurgia”, diz. Agora as duas lutam pelo direito das domésticas para que outras mulheres não passem pelo que passaram. “Eu gosto de dizer que lutei muito pela minha vida e sou autora da minha história. A situação das domésticas já melhorou muito com a chegada das leis, mas ainda pode melhorar”, conclui Valdirene Boaventura. Com informações do g1 Bahia.