Em quase três anos e meio de gestão, o governo Jair Bolsonaro (PL) intensificou ação iniciada pelo antecessor Michel Temer (MDB) e transformou radicalmente o programa de reforma agrária brasileiro.
O modelo de distribuição de terras a camponeses pobres deu lugar a outro em que as verbas são minguantes, as desapropriações de terras e assentamentos de famílias quase não existem mais e o foco se resume a uma maratona de entrega de títulos de propriedade aos antigos beneficiários. O fenômeno é traduzido em números claros, todos reconhecidos pelo governo.
O orçamento para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, o mesmo ocorrendo com a verba discricionária total do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.
A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —1995 a 2010— somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas.
Já a entrega de títulos de propriedade provisórios ou definitivos observou um salto sob Temer, logo após a edição da lei 13.465/2017, que flexibilizou o processo de regularização fundiária, e virou uma febre sob Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde.
Há várias nuances por trás desses números, mas é possível definir contornos bastante claros. Em primeiro lugar, Bolsonaro colocou em prática, desde a posse, uma política agrária comandada por ruralistas e radicalmente oposta a movimentos sociais de luta pela terra, em especial o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Em seu primeiro ato, Bolsonaro transferiu o Incra da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, pasta que entregou à deputada Tereza Cristina, uma das líderes da bancada ruralista. Para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários nomeou um inimigo histórico dos movimentos sociais do campo, o ruralista Nabhan Garcia.
Nos primeiros dias de gestão, o Incra paralisou todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária, medida que serviria de prenúncio a um futuro de estrangulamento orçamentário e fim da política de criação de assentamentos.
Incra, governo e ruralistas reconhecem a paralisia, mas afirmam, em linhas gerais, que a reforma agrária não se resume à desapropriação e distribuição de terras, e que em um cenário de orçamento bastante limitado é preciso priorizar a consolidação dos atuais assentamentos, tendo como foco a entrega de títulos.
Movimentos rurais e partidos de esquerda ingressaram no fim de 2020 no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ação para tentar obrigar o governo a retomar o programa, mas em 2021 ela foi rejeitada. Houve recurso e o caso está, hoje, nas mãos de André Mendonça, um dos ministros indicados por Bolsonaro.
A titulação das propriedades rurais da reforma agrária insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST sobre os assentados, além de buscar abrir uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda.
O discurso do governo é de que esses certificados representam a “alforria” dos assentados em relação ao MST e a segurança jurídica para que as famílias tenham acesso a crédito.
Nas propagandas partidárias do PP que começaram a ir ao ar nos últimos dias, por exemplo, a ex-ministra Tereza Cristina aparece afirmando que o governo Bolsonaro fez a “maior ação de regularização fundiária do Brasil”, destacando a concessão de títulos às mulheres.
Só em 2022, por exemplo, Bolsonaro já participou de sete eventos de entrega de documentos de propriedade, ocasiões em que o clima se assemelha a palanque eleitoral, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.
A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos relativos à propriedade, inegociáveis por dez anos.
Atualmente há três tipos de título, que são concedidos após um trâmite burocrático que envolve não só questões administrativas, como a evolução da consolidação do assentamento e da produção dos assentados.
O primeiro é provisório e chama-se CCU (contrato de concessão de uso), que permite o uso e exploração da terra, além do acesso aos benefícios do programa de reforma agrária.
Os outros dois são definitivos. A CDRU (concessão de direito real de uso), que pode ser concedida de forma coletiva ou individual, mas mantém o Estado como o proprietário da terra, e o TD (título de domínio), que é individual e em que a propriedade é transferida para o assentado.
Esse último, cumpridas algumas condicionantes, entre elas o prazo de 10 anos desde a obtenção do título provisório, pode ser negociado livremente.
Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual de distribuição de títulos. Argumentam, entre outros pontos, que feita de forma isolada e sem planejamento irá precarizar assentamentos e levar parte das terras a voltar às mãos de latifundiários e do agronegócio.
“Em termos conceituais, acho correto que se faça isso [a titulação]. Mas o Diabo mora nos detalhes”, diz o ex-ministro Raul Jungmann, chefe da pasta de Política Fundiária sob FHC, afirmando que é preciso saber o estágio de consolidação de cada assentamento, se os produtores já são autossuficientes e se há infraestrutura completa, entre outros pontos.
“Pode ser uma alforria para o inferno, a depender do estágio de instalação. Há uma minoria de assentados em condições adequadas, jamais algo em torno de 340 mil famílias, tenho certeza de que não.”
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público lançou no ano passado um guia em que alerta para o risco da distribuição dos títulos de domínio.
“Deve-se reconhecer que, no caso do TD, há um risco maior de mercantilização da terra e da venda de lotes, incrementando a especulação em torno do imóvel. Por essa razão, recomenda-se ampla discussão a respeito desse título.”
De acordo com o sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer, estudioso de temas ligados aos movimentos sociais agrários, o Incra se tornou um cartório e a entrega de títulos, uma fachada para angariar votos na base social do campo.
“O órgão fundiário, para dizer que não está totalmente paralisado, inclusive porque não tem orçamento, emite títulos. Os cortes de recursos públicos para políticas fundiárias e ambientais são escandalosos. O Incra não tem recurso para reconhecer um território quilombola, por exemplo”, afirma.
O MST defende a emissão das CDRU, de forma coletiva, sob o argumento de que isso fortalece o movimento de luta pelo campo e os assentamentos e permite a pequenos agricultores se unirem em prol de uma produção sustentável, além de evitar a captura das terras pelo agronegócio.
“O que Bolsonaro faz é uma propaganda enganosa, aproveitando as desapropriações feitas nos governos FHC, Lula e Dilma”, afirma Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST, segundo quem há mais de 100 mil famílias em “lona preta” pelo país, aguardando desapropriação de terras e assentamento.
Ele cita como exemplo de eficiência da ação coletiva dos assentados a produção de arroz no Rio Grande do Sul. “A produção é toda coletiva e a produção do arroz orgânico é de mais de 20 mil toneladas ao ano. Se fosse individualizada, um produziria arroz, outro, banana, outro, batata, e isso não daria volume e escala para o mercado nacional.”
A bancada ruralista na Câmara defende a política de Bolsonaro. “Essa regularização é para passar o título para quem já está há tantos anos, é a coisa mais justa do mundo”, diz Celso Maldaner (MDB-SC), que coordena a comissão de agricultura familiar da Frente Parlamentar da Agropecuária.
O presidente da frente, Sergio Souza (MDB-PR), reforça, dizendo que a distribuição de títulos é um direito legal das famílias. Sobre a paralisia na desapropriação e atendimento aos sem-terra, afirma que o governo tem que priorizar os já assentados, dando “um título em definitivo e a condição para ele de fato utilizar a terra”.
O Incra foi procurado no fim da tarde de sexta-feira (6) e não se manifestou, mas, na ação em curso no STF, destacou a titulação de terras e créditos oferecidos aos assentados, afirmando, em linhas gerais, que o termo “reforma agrária” não pode se resumir à aquisição e desapropriação de terras.
A Reforma Agrária sob Bolsonaro:
– Janeiro de 2019
Bolsonaro assume deslocando o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) da Casa Civil da Presidência para o Ministério da Agricultura, pasta que entregou à bancada ruralista.
Nos primeiros dias de gestão, o Incra paralisa todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária, medida que atinge também os processos para identificação e delimitação de territórios quilombolas.
– Novembro de 2019
Documento interno do próprio Incra informa que havia 111 mil hectares prontos para a reforma agrária, com capacidade para assentar 3.862 famílias, mas que tudo estava parado.
– Dezembro de 2020
Documento do Incra obtido pela Folha mostrava que o governo havia paralisado 413 processos de reforma agrária com a interrupção de vistorias e análises sobre desapropriação.
Associações de trabalhadores rurais e cinco partidos de oposição (PT, PSB, PC do B, PSOL e Rede) ingressam no Supremo com ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) para obrigar o governo a retomar a execução da reforma agrária
– Fevereiro de 2021
A cúpula do Incra reconhece nessa ação que o governo Bolsonaro zerou a edição de decretos de desapropriação e fez a menor aquisição de terras com essa finalidade desde pelo menos 1995. Mas diz que a reforma agrária não se resume à aquisição de terras e ao assentamento de famílias
Segundo o Incra, havia 87,5 milhões de hectares de terras distribuídos em 9.400 projetos de assentamento, onde viviam 967 mil famílias. As áreas equivalem aos tamanhos de Espanha e Alemanha somados, ou 10,3% do território brasileiro
– Abril de 2021
Sob o comando de Augusto Aras, a PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifesta contra a ADPF das associações de trabalhadores rurais e partidos de oposição sob o argumento, entre outros, de que a gestão da política pública da reforma agrária é de competência exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo, não cabendo ingerência do Judiciário com a amplitude pretendida.
– Junho de 2021
O então ministro do STF Marco Aurélio Mello rejeita a ADPF sob o argumento, entre outros, de que “ao Supremo não cabe substituir-se ao Executivo federal, implementando política neste ou naquele sentido”. Os autores da ação apresentaram recuso, ainda não julgado. Com a aposentadoria de Marco Aurélio, o relator passou a ser André Mendonça, indicado por Bolsonaro.
– Março de 2022
O governo Bolsonaro afirma ter entregue 337 mil títulos provisórios ou definitivos aos assentados da reforma agrária, um recorde.
O MST diz haver no país mais de 100 mil famílias morando sob “lonas pretas” em invasões pelo país, aguardando desapropriação das terras e criação de assentamentos da reforma agrária. As informações são da Folhapress.