Desde que assistiu ao filme Orfeu Negro (1959), adaptado pelo cineasta francês Marcel Camus (1912-1982) a partir da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes (1913-1980), quando tinha 16 anos, Janis Joplin (1943-1970) não tirou mais da cabeça a ideia de, um dia, conhecer o Rio de Janeiro.
Segundo sua biógrafa, Holly George-Warren, autora de Janis Joplin: Sua Vida, Sua Música (2020), a roqueira americana que completaria 80 anos nesta quinta-feira, dia 19, ficou encantada com as cenas filmadas no Carnaval carioca. Tão encantada que, em fevereiro de 1970, pegou um avião, em companhia de Linda Gravenites (1939-2002), rumo ao Brasil.
As duas melhores amigas desembarcaram no Rio, numa sexta-feira, dia 6, véspera de Carnaval. Em carta escrita a Myra Friedman (1932-2010), autora da biografia Enterrada Viva (1985), Janis disse que estava se sentindo “como Brigitte Bardot”, atriz francesa que, entre janeiro e abril de 1964, passou férias no balneário de Búzios, então uma pacata vila de pescadores, no litoral norte do Estado.
“Janis queria livrar-se da heroína e achou que curtir o Carnaval no Rio seria uma boa ideia. Ela simplesmente amou o Brasil. Foi tratada como estrela e chegou a dar entrevista coletiva”, conta a autora que, no momento, prepara duas biografias: uma sobre o escritor Jack Kerouac (1922-1969) e outra sobre a cantora e compositora Dolly Parton.
A coletiva a que George-Warren se refere aconteceu no Copacabana Palace, onde Janis Joplin se hospedara. No bate-papo com repórteres e fotógrafos, a cantora afirmou que amava o Brasil porque “as pessoas parecem mais simpáticas umas com as outras do que em Nova York”, explicou que, se não fosse cantora, “seria uma beatnik” e, por fim, completou que, se um dia a voz dela a deixasse na mão, iria “morar na praia”.
Reza a lenda que, entre outros apuros, a cantora teria sido expulsa do Copacabana Palace por mergulhar nua na piscina. Quem cobriu aquela coletiva, realizada à beira da tal piscina, foi o jornalista Nelson Motta.
“Doidona e esfuziante de óculos cor de rosa, era uma caipirinha sardenta que emanava uma luz e uma chama envolventes, com suas risadas rascantes”, recorda o jornalista, escritor, produtor e letrista.
Quanto à voz rouca, Motta acredita que não ia levar muito tempo até seu principal instrumento de trabalho deixá-la na mão. “Impossível imaginá-la cantando, mesmo sem drogas, durante muito tempo, daquela maneira: não há garganta que aguente!”.
“Num doce balanço, a caminho do mar…”
Nas areias escaldantes de Ipanema, Janis Joplin conheceu o amor de sua vida: David George Niehaus, um americano de Cincinnati, no Estado de Ohio, recém-chegado de uma viagem de cerca de um ano pela Amazônia.
Janis estava acompanhada de Linda e David de Ben Beall, colega da Universidade de Notre Dame, em Indiana. Os dois logo começaram a namorar e, segundo a biógrafa, não se desgrudaram mais.
Entre um mergulho e outro, Janis assistiu aos desfiles das escolas de samba na avenida Presidente Vargas, no centro do Rio. “Ela aprendeu os movimentos sensuais do samba enquanto dançava nas ruas com Niehaus”, detalha no livro.
Quando os quatro dias de folia chegaram ao fim, Janis e David ainda tentaram organizar um concerto ao ar livre, mas o regime militar não autorizou.
O show já tinha até nome: Unending Carnival (ou “Carnaval sem fim”, em livre tradução). “Era uma ditadura militar e eles tornaram a coisa impossível”, lamentou Niehaus em entrevista a George-Warren. “Não queriam um bando de cabeludos tocando rock’n’roll.”
Janis Joplin não fez o show que gostaria de ter feito no Rio de Janeiro, mas não deixou de soltar o vozeirão em pelo menos duas ocasiões: nas boates Bolero, em Copacabana, e Porão 73, no Leme, ambas extintas.
Uma dessas “apresentações” foi assistida pela cantora Alcione. A sambista estava passeando em Copacabana com o cantor Sérgio Augusto Bustamante, o Serguei (1933-2019), quando, na altura da Galeria Alaska, famoso reduto gay da noite carioca, o roqueiro berrou: “Meu Deus, a rainha do underground!”. “Que rainha do underground, Serguei?”, quis saber Alcione. “Do que você está falando?”.
Serguei, então, se aproximou de Janis Joplin e apresentou as duas cantoras. Da Alaska, os três seguiram para o Porão 73, onde Serguei e Alcione costumavam se apresentar. Lá, a visitante ilustre deu uma “canja” — cantou, segundo o roqueiro, duas músicas: Ball and chain, do álbum Cheap Thrills (1968), e What I’d say, do repertório de Ray Charles.
“O som dela era estranho”, recorda Alcione. “Só sei que o povo aplaudiu. E ela também ficou agradecida. O Serguei foi passear com ela depois. Foi assim que conheci Janis Joplin”, relata a Marrom.
Em depoimento ao jornalista e escritor Ronaldo Bressane, publicado na revista Trip, de agosto de 2000, Serguei conta que conheceu Janis Joplin em 1968, em Long Island, durante um festival de rock.
Em seguida, moraram juntos, por cerca de um mês, em São Francisco. Nesse meio tempo, conheceu duas lendas do rock: o guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970) e o cantor Jim Morrison (1943-1971). “Um dia, ela estava fazendo suco e bateram na porta. Era um black power esquisito. ‘Pode abrir’, ela falou. Foi assim que conheci o Jimi Hendrix”, contou Serguei a Bressane.
Se meu apartamento falasse…
Em sua meteórica passagem pelo Rio, Janis conheceu Ricky Ferreira, fotógrafo da edição brasileira da revista Rolling Stone.
Quando a cantora foi expulsa do Copacabana Palace, por supostamente ter mergulhado nua na piscina do hotel, ficou hospedada, ela e Linda, no apartamento dele, um sala e quarto no Leblon, na esquina das ruas Humberto de Campos e João Lira. O fotógrafo ficou sabendo da confusão no Copacabana Palace por intermédio de sua namorada, que trabalhava na loja H. Stern que fica no hotel.
Segundo Ferreira, Janis comia mal (“Pela manhã, gostava de fazer ‘sanduíches’ de biscoito com recheio de marmelada”) e bebia muito (“Como não tinha Southern Comfort, sua marca favorita, tomava Creme de Ovos Dunbar e Fogo Paulista!”).
Mais de meio século depois, ele lembra da vez em que Janis levou uma dura da polícia por fazer topless na Praia da Macumba. “Dali a pouco, apareceu uma ‘joaninha’ (apelido dado às viaturas nas décadas de 1960 e 1970). Quando os policiais viram que era gringa, liberaram”, conta o fotógrafo.
O rock pede carona
Na Quarta-Feira de Cinzas, Janis se despediu de Linda, que regressou para a Califórnia, e seguiu de moto, na garupa de Niehaus, para a Bahia. Não foram muito longe. “Sofreram um acidente no meio do caminho”, conta a biógrafa. “Janis teve uma concussão, mas logo se recuperou. Continuaram sua jornada no melhor estilo Jack Kerouac, ou seja, pedindo carona, algo que Janis fazia desde a adolescência, no Texas”.
Em Salvador, Janis e David ficaram hospedados numa casa alugada pelo artista plástico Lula Martins na Praia do Rio Vermelho. Em depoimento para o documentário Summertime in Bahia, dirigido pelo cineasta Henrique Dantas, Lula conta que, em sua estadia em Salvador, a roqueira cantou, à capela, Summertime, um de seus maiores sucessos, em um prostíbulo da Ladeira da Montanha.
“Todos nós choramos. Impossível não chorar”, contou Lula em um trecho do documentário. Diante da dificuldade de conseguir autorização para produzir um doc sobre a roqueira, Dantas decidiu transformar o projeto em longa-metragem de ficção, “livremente inspirado em fatos reais”, também batizado de Summertime in Bahia. “O roteiro já está pronto. Estamos na fase de captação de recursos”, adianta o cineasta.
Durante o período em que esteve na Bahia, Janis visitou a aldeia de pescadores de Arembepe, a 50 quilômetros da capital. O reduto hippie é famoso por ter recebido, entre 1968 e 1973, outros visitantes ilustres, como o roqueiro inglês Mick Jagger, o cineasta polonês Roman Polanski e o ator norte-americano Jack Nicholson.
Em Arembepe — Aldeia do Mundo: Sonho, Aventura e Histórias do Movimento Hippie (2022), a jornalista Claudia Giudice conta que Janis Joplin caiu de amores por um pescador local, o Suica.
“Conversei com vários colegas dele, hoje senhores velhinhos, com a memória prejudicada pelo mar e a cachaça, e todos são unânimes em dizer que Janis ficou louca pelo pescador”, conta a coautora do livro.
Como lembrança da Bahia, Janis levou algumas bijuterias, como uma gargantilha de miçangas vermelhas com um pingente em forma de coração.
Todo carnaval tem seu fim
Na volta para casa, Janis e David não conseguiram viajar juntos. Segundo George-Warren, o visto dele tinha vencido. Se reencontraram dias depois em Larkspur, na Califórnia, onde a cantora tinha uma casa.
“Os dois moraram juntos por um tempo. Depois, ele viajou para o norte de África e ela começou a excursionar com sua nova banda, a Full Tilt Boogie. Ainda assim, continuaram a trocar correspondência. Se Janis não tivesse morrido tão precocemente, o relacionamento deles teria durado mais”, acredita a biógrafa.
No dia 4 de outubro de 1970, Janis Joplin não compareceu ao estúdio Sunset Sound, em Hollywood, para gravar a música Buried Alive in the Blues, composta por Nick Gravenites.
O produtor Paul Rothchild (1935-1995) estranhou a ausência dela e avisou o empresário John Cooke. O corpo da cantora foi encontrado, por volta das sete e meia da noite, em um quarto do hotel Landmark. Vítima de overdose acidental de heroína, Janis Joplin tinha 27 anos.
Na gaveta da escrivaninha de seu quarto no hotel, foi encontrada, segundo o documentário Janis Joplin: Little Girl Blue (2015), dirigido por Amy J. Berg, uma carta escrita pelo ex-namorado que conhecera no Rio. “Sinto sua falta de verdade. Eu te amo, Mama, mais do que você pensa”, dizia Niehaus.
Quando soube de sua morte, o rapaz estava em Cabul, no Afeganistão. “Fomos dois tolos ao permitir que aquele momento que passamos um nos braços do outro fosse o último”, contou para George-Warren. Com informações da BBC.