Há quase dois anos há uma batalha judicial entre comunidades locais, organizações ambientais do Brasil e do exterior e a multinacional francesa da área de energia Voltalia. Em questão está a construção, que já começou, de um complexo eólico, na região de Canudos, na Bahia, próximo ao único refúgio da arara-azul-de-lear do Brasil. A empresa responsável pelo empreendimento pretende instalar 80 turbinas perto do principal habitat dessa espécie, considerada em perigo de extinção. Pelo último censo, realizado em 2019, estima-se que sejam apenas 1.500 indivíduos ainda em vida livre.
Agora, a mais recente novidade no caso é a decisão emitida em conjunto pelo Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado da Bahia, que determina a “nulidade das licenças expedidas no procedimento de licenciamento ambiental do Complexo Eólico Canudos, na região do Raso da Catarina, município de Canudos/BA, associada ao complexo gerador de energia eólica desenvolvido pelas empresas requeridas, o qual foi irregularmente emitido pelo INEMA, com prejuízo direto ao meio ambiente”.
No documento, assinado no último dia 6 de março, o Procurador da República Marcos André Carneiro Silva pede a suspensão imediata da Licença Prévia, da Licença de Instalação e da Licença de Operação, assim como “que seja determinado aos demais requeridos que se abstenham de operar e fazer funcionar o Complexo Eólico Canudos – Parque Eólico Canudos I e II até que seja elaborado o Estudo de Impacto Ambiental/EIA/RIMA e realizada audiência pública, sob pena de multa diária de R$ 300.000,00”.
No final do ano passado, 70 organizações civis e associações comunitárias denunciaram ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos o projeto da Voltalia na Bahia. Assinaram a petição entidades como a American Bird Conservancy (ABC), WWF e Re:wild.
“A arara-azul-de-lear voltou da beira da extinção por meio de esforços intensivos de conservação nos últimos 35 anos e agora enfrenta o risco de colisões mortais com turbinas e linhas de transmissão”, alertou Amy Upgren, diretora da Aliança para Extinção Zero e Programa de Áreas Chave para a Biodiversidade da ABC.
“A energia renovável é vital na luta contra a mudança climática, assim como a conservação da vida selvagem cada vez mais ameaçada de nosso planeta”, acrescentou Lewis Grove, diretor de Política Eólica e Energética da American Bird Conservancy. “Pesquisadores da COP15 projetam que um milhão de espécies estão em extinção. A arara-azul-de-lear será uma delas? Estamos defendendo que este projeto seja realocado onde causará menos danos”.
Entenda a polêmica
O complexo eólico de Canudo, estimado em R$ 500 milhões, prevê a instalação de 28 turbinas eólicas num primeiro momento e outras 53 numa segunda fase. O empreendimento contará ainda com uma rede de transmissão de energia de 50 km, adentrando o município de Jeremoabo. Toda a eletricidade produzida será vendida para a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) num contrato já fechado pelos próximos 20 anos.
Segundo a Fundação Biodiversitas, que mantem uma área particular de 1.500 hectares na região, a Estação Biológica de Canudos, onde é realizado, em parceria com outras entidades nacionais e internacionais, um programa de conservação que inclui o monitoramento da arara-azul-de-lear, um dos pontos que mais chama a atenção sobre o empreendimento é que a Voltalia não precisou apresentar um licenciamento ambiental completo para obter a permissão para a obra.
Uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabelece a exigência de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), além de audiências públicas, para plantas eólicas que estejam situadas em “em áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção e endemismo restrito”. Apesar disso, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) aprovou o projeto somente com a apresentação do licenciamento simplificado.
Desde então, o Ministério Público da Bahia já tinha recomendando a suspensão da obra, assim como os Conselhos Regionais de Biologia do Nordeste. Todavia, de acordo com a investigação realizada pelo Ministério Público Federal, a Voltalia “se expressou pelo não atendimento da recomendação” e defendeu que as “licenças apresentadas são válidas, ainda que não tenham adotado o rito legalmente previsto”.
Em sua análise, o procurador Marcos André Carneiro Siva afirma que “Fica evidente na resposta da empresa Voltalia que se busca dar como “fato consumado” a construção do empreendimento, de modo que apenas ações de reparação e compensação deveriam ser adotadas, mesmo que a licença seja nula de pleno direito”.
Já em referência à atuação do Inema, Carneiro diz que houve “Equívocos grosseiros, afinal, se o processo
de licenciamento não adotou o rito previsto para o empreendimento, não se pode falar em licença válida, ao contrário, a licença é nula de pleno direito”. No documento de 70 páginas, o Ministério Público Federal menciona, mais de uma vez, que o empreendimento foi analisado como sendo de impacto ambiental pequeno para a emissão da licença ambiental, o que não é verdade.
“Trata-se de irregularidade grave, pois possibilitou que o complexo eólico Canudos fosse sendo instalado sem a devida documentação necessária para sua correta implantação, o que ademais de violar normas ambientais, viola um conjunto de direitos socioambientais e princípios de Direito Administrativo, tal como a legalidade, a publicidade, dentre outros”, diz o magistrado. O Conexão Planeta entrou em contato com a assessoria de imprensa da Voltalia, mas até este momento não teve retorno.
A localização do Complexo Eólico de Canudos está indicada com a seta vermelha, onde aparecem as linhas finas laranjas. A mancha clara, em verde, apresenta a área de uso da arara-azul-de-lear na região do Raso da Catarina | FOTO: Divulgação |
Arara-azul-de-lear: risco de extinção
A arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) é uma espécie endêmica do Brasil, ou seja, só existe em nosso país e em nenhum outro lugar do mundo. Infelizmente, ela é considerada em perigo de extinção, de acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN).
Descrita pela primeira vez em 1856, o habitat da arara-azul-de-lear permaneceu desconhecido por mais de um século. Foi apenas em 1978 que pesquisadores descobriram sua localização, na região conhecida como Raso da Catarina, considerada por isso “sítio-chave” pela Aliança Global para a Extinção Zero e área prioritária de importância extremamente alta para conservação da biodiversidade da Caatinga pelo Ministério do Meio Ambiente.
O primeiro censo, realizado em 2001 pela Fundação Biodiversitas, em conjunto com o Cemave – centro nacional voltado para a conservação das aves silvestres ligado ao ICMBio, apontou a existência de 228 indivíduos. No último, de 2019, já eram quase 1.500, observados em seus cinco dormitórios: Serra Branca, Estação Biológica de Canudos, Fazenda Barreiras, Baixa do Chico (Terra Indígena Pankararé) e Barra do Tanque.
Por causa da melhora nos números da população, a arara-azul-de-lear passou da categoria “criticamente em perigo” da IUCN para “em perigo”, em 2011. Mas desde que organizações de proteção ambiental tomaram conhecimento do projeto da Voltalia, em 2021, teme-se pela segurança das araras. A espécie tem o hábito de realizar longos voos diariamente, cerca de 60 a 80 km. Sai do dormitório ao amanhecer, se alimenta em áreas vizinhas à sua morada, basicamente dos cocos da palmeira licuri, e no final da tarde, pode ser vista, aos bandos, chegando de diversas direções.
“Achamos arriscado o funcionamento de um parque eólico na área de ocorrência das leares. A espécie voa aos pares e em bando, de modo que um único evento de colisão poderá incidir na morte de muitos indivíduos e comprometer a viabilidade populacional em pouco tempo, ou seja, extinguir a espécie”, afirmou Glaucia Drummond, ex-superintendente da Fundação Biodiversitas na época. Um estudo também identificou outras espécies de animais, nesse caso, mamíferos, que têm a região do complexo como habitat, sendo três delas ameaçadas de extinção pela Lista Nacional da Fauna Ameaçadas do ICMBio: o tatu-bola; a jaguatirica e o gato-do-mato-pequeno.
Comunidades locais também relatam impactos
E não é apenas a sobrevivência da arara-azul-de-lear que está em risco. Moradores e comunidades locais também estão preocupadas com os impactos provocados pela construção do complexo da Voltalia na região. Em 2019, representantes da Associação Comunitária Agropastoril dos Agricultores e Agricultoras Familiares da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto de Bom Jardim e da Associação Comunitária e
Agropastoril da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto do Rio Soturno já tinham demonstrado temor sobre a obra.
Na época, segundo o documento do Ministério Público Federal, foi mencionada a supressão da vegetação nativa e como isso afetaria outras espécies da fauna nativa, além da criação de animais, sobretudo cabras e gado, que servem de meio de subsistência para essa população. Relatos indicavam que terras comunais estariam sendo cercadas e bloqueadas por estradas, levando ao sobrepastoreio e degradação dessas áreas. A Voltalia alega que o empreendimento trará empregos para a região, todavia, após a entrada em funcionamento do complexo, a expectativa é que serão necessárias apenas 15 pessoas para cuidar de sua operação no local. as informações são do Conexão Planeta.