Salvador registrou quatro feminicídios em quatro dias, na última semana. Na madrugada desta segunda-feira (29), o investigado pelo mais recente deles foi detido por mandado de prisão. O feminicídio é tipificado como um crime de ódio contra as mulheres, e é praticado por diversos motivos. Para estudiosos e pesquisadores, todos eles por influência da sociedade.
Se apontar a misoginia – que é a repulsa ou desprezo contra as mulheres – como base para os feminicídios pode parecer exagero, é preciso discutir o que justificaria um homem que passou oito anos preso por matar uma ex-companheira, cometer de novo o crime contra outra mulher?
Esse foi o caso de Anderson dos Santos Silva, que invadiu a casa da ex-namorada, Natalina dos Santos, no bairro da Liberdade, e a esfaqueou na madrugada de 25 de maio. O investigado conheceu a vítima em 2022, meses após sair da prisão por matar a mãe do filho dele.
Por que os homens matam as mulheres? Para quem se dedica a estudar o tema, a resposta é simplesmente porque podem. Essa noção de poder é influenciada pela sociedade desde que ainda são crianças, aplicada na maioria das vezes em relacionamentos heterossexuais, como explica a psicóloga Niliane Brito.
“É uma questão que tem a ver com o que foi nos designado cultural e historicamente. A sociedade propaga que o poder está no gênero masculino, e eu falo nos dois sentidos de poder: de algo pode ser exclusivamente feito por homens, e também do poder de status, que o homem detém o poder sobre a mulher”.
“Isso vem sendo mudando ao longo do tempo, à medida em que a mulher vai ocupando outro espaço na sociedade. Só que esse homem ele vai perdendo a sensação de virilidade, de poder, na sua concepção masculina”.
Dificuldade em lidar com as frustrações e o ‘luto’
A psicologia usa o termo “limiar de frustração” para explicar a baixa capacidade que algumas pessoas têm de lidar com a contrariedade. No caso dos homens héteros, isso é acentuado pela sensação de perda do poder e do controle sobre o outro. E esse outro são as mulheres.
“Em muitos casos, o gênero masculino, por causa da questão do poder e da baixa validação de seus sentimentos, acaba não validando seus sentimentos, não consegue colocar seus sentimentos em evidência, para lidar e encarar suas emoções. E aí não lidam de forma saudável com a frustração”.
“E ainda tem a questão da possessividade: ‘se eu não tenho esse objeto amado, ninguém mais pode ter posse dele’”.
Depois de um relacionamento de sete anos, Adelson dos Santos Oliveira matou Carla dos Santos Nunes, aos 27 anos, por não aceitar o fim do namoro. Antes de cometer o crime, ele mandou várias mensagens para a vítima, sob a ameaça de que ela não teria nenhum outro companheiro além dele.
A psicóloga destaca que a falta de noção dos homens sobre a própria possessividade gera outro agravante: a desumanização das mulheres, já que elas deixam de ser um sujeito, tornando-as apenas um objeto que existe para suprir as necessidades afetivas e de relacionamento.
“Essa pessoa torna-se apenas um objeto de amor, um objeto de prazer. Esse objeto que só pode ser desse sujeito e, no delírio dessa pessoa, não pode ser de mais ninguém”.
Após matar Carla, Adelson descartou o corpo dela em uma rua no bairro do IAPI, em sinal de desprezo pela mulher a quem disse amar. Para a psicóloga, a dificuldade em lidar com o fim dos relacionamentos é uma das frustrações masculinas geradas pela noção de poder.
“Todo final de relacionamento é um luto, é como se a gente estivesse perdendo uma pessoa, um ente querido para a morte, é como se fosse um falecimento. Na ruptura de uma relação, precisa também ser elaborado esse luto, porque a gente tem a perda da pessoa amada. Quando não é possível lidar com isso sozinho, é necessária a ajuda de um profissional”.
Masculinidade tóxica e o papel da mídia no ‘efeito dominó’
Imagine crescer e passar toda a adolescência e juventude tendo que reprimir as próprias emoções e sentimentos, para suprir a expectativa social de ter um comportamento viril e ser o grande provedor: antes de vitimar as mulheres, a masculinidade tóxica também destrói a humanidade dos homens.
“É interessante pensar na importância de validar os sentimentos das crianças. Por exemplo, dizer frases do tipo: ‘homem não chora’, ‘não foi nada, você é forte, você aguenta’. Essas são marcas da masculinidade tóxica. A gente precisa estar alerta para alguns comportamentos, expressões e frases que são repetidas no âmbito familiar, com crianças e com quem quer que seja”, pondera Niliane.
Com quatro feminicídios seguidos em quatro dias, a sensação de efeito dominó não é apenas uma impressão. Niliane Brito explica que a representação dos crimes contra mulheres na mídia pode gerar um comportamento de cascata.
“É importante noticiar as estatísticas, sim, noticiar o que está acontecendo verdadeiramente na nossa sociedade, mas algumas questões têm que se ter cuidado ao noticiar. Tem que ter cuidado ao colocar ênfase nos casos, porque pode ser um gerador de gatilho”.
“É importante que não se comunique em detalhes como foi cometido o crime, como é que se matou aquela mulher. Casos muito marcados pela mídia podem, sim, ser um impulsionador de outros casos, de novos casos, assim como suicídios, por exemplo”.
Transformando a violência
O crime de feminicídio raramente é o início da violência contra a mulher. O ciclo costuma começar pela violência psicológica, quando a vítima é humilhada, tem suas ações controladas, é constrangida e ameaçada. Ou ainda patrimonial, quando o homem limita ou gera prejuízos financeiros à vítima.
A explicação parece ser simples, mas a violência é tão intrínseca que muitos homens alegam não saber que as cometiam, até chegarem ao ponto de agredir as companheiras. Esses relatos estão presentes nas ações do Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao Feminicídio (NEF) de Salvador.
Sob os cuidados da Secretaria Municipal de Política para Mulheres, Infância e Juventude da prefeitura de Salvador, o projeto atende, desde 2001, homens sob medidas protetivas. Por determinação judicial, eles precisam cumprir um cronograma de encontros semanais por três meses, e são monitorados por um ano.
“Muitos dizem que se transformaram em um novo homem, que não sabiam que o que eles faziam era violência, porque os pais já agiam assim”. “Eles cresceram ouvindo que o homem tem que ser viril, então não pode ser frouxo, ou seja, falas machistas estruturais que nós temos, mas que ao final eles começam a refletir isso de uma outra forma”, descreve a secretária da SPMJ, Fernanda Lordêlo.
O NEF já chegou ao 15º grupo de formação, sendo que três deles já foram totalmente concluídos e outros dois serão iniciados. Pelo menos 150 homens passaram por atendimento no grupo, e o índice de reincidência na violência doméstica e familiar foi de zero.
“Esses homens têm aulas com preceptores, formadores e facilitadores que são contatos nossos da Guarda Municipal, delegadas e profissionais, que dialogam com eles sobre masculinidade tóxica, comunicação não-violenta, alienação parental, cidadania e todos os aspectos relacionados a Direitos Humanos, que envolvem a questão da potencialidade relacionada à violência doméstica e familiar”.
O trabalho contra a reincidência começa com o combate à reatividade, porque quando chegam ao NEF os homens se sentem vítimas das mulheres que eles violentaram.
“No início é bem difícil, eles chegam bem reativos, culpabilizando as mulheres por estarem nesse espaço, mas com o tempo eles começam a refletir isso e já mudar bastante o discurso. Muitos não compreendem que o próprio NEF também é protetivo aos homens. Porque é uma reflexão da sua violência, antes dele se transformar num possível feminicida”.
“Quando ele reflete e faz essa autorresponsabilização do seu ato, ele passa a compreender que não se pode avançar na violência, sob pena de ele responder por um crime maior”.
Os encontros do NEF são parte de trocas de reflexões, e não funcionam como terapia. Apesar disso, o núcleo faz a orientação e direcionamento para os homens que expressem a necessidade desse tipo de atendimento, como explica a secretária Fernanda.
“Quando esse homem chega, ele tem esse atendimento pela assistente social, pela psicóloga, exatamente para que seja feito um uma escuta. Quando há efetiva necessidade de uma escuta mais individualizada, a equipe pode analisar com ele e orientá-lo. Nós fazemos o direcionamento para que façam esse acompanhamento terapêutico com esse homem, caso haja uma necessidade”.
Medidas protetivas e atuação das polícias Civil e Militar
O primeiro passo para que as mulheres sejam protegidas é buscar uma delegacia para registrar o crime. O principal empecilho são as ameaças sofridas ou mesmo a avaliação pessoal equivocada de que “não há necessidade” de fazer um boletim de ocorrência.
É só a partir do registro em delegacia que as mulheres podem ter a proteção do estado. Coordenadora da 3ª Delegacia de Homicídios, a delegada Pilly Dantas, explica como ocorre o processo.
“Desde o momento da ocorrência, é deslocada a equipe e iniciada a investigação. Com isso, é instaurado o inquérito policial. Durante o inquérito são coletadas todas as provas, são feitas as perícias, testemunhas são ouvidas e todas as provas são obtidas. Algumas vezes já há a prisão em flagrante, outras vezes é pedida a prisão temporária, que vai para apreciação do juiz, para deferir a prisão”.
Quando há prisão em flagrante, a polícia tem até 10 dias para concluir um inquérito. Nos outros casos, é possível concluir em 30 dias. Só então, esse inquérito é remetido ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), que avalia se há necessidade de outras investigações, para fazer a denúncia do investigado.
“Nos casos de violência doméstica, é comum que o agressor tenha esse tipo de relacionamento com todas as suas companheiras. Começa com o ciúmes excessivo, depois tem a agressividade. Não é via de regra, mas é um comportamento que se reitera”, complementou a delegada Pilly Dantas.
Com o registro de ocorrência, as vítimas podem pedir uma medida protetiva – um recurso essencial para ajudar a enfrentar o feminicídio. Esse pedido também pode ser feito pela Polícia Civil, caso a delegada ou o delegado avaliem a necessidade.
Os pedidos são avaliados pelo juizado das Varas de Violência Doméstica e Familiar. Depois que as medidas são deferidas, a proteção é assegurada pela Operação Ronda Maria da Penha, comandada pela major Tereza Raquel, da Polícia Militar. Atualmente, 610 mulheres são assistidas em Salvador.
“A gente atua fazendo visitas solidárias a essas mulheres. Nós vamos até o seu encontro, para verificar se essas medidas de fato estão sendo cumpridas, se estão sendo respeitadas pelo agressor”.
“Nós também atuamos fazendo a parte preventiva, porque entendemos que, enquanto rede de atendimento, precisamos oferecer uma reflexão, em relação à transformação social que nós queremos”, destaca a major Tereza Raquel.
De acordo com a major, o trabalho da Ronda Maria da Penha se estende através de rodas de conversas e oficinas, além de palestras que são ministradas em todos os ambientes aos quais a polícia é convidada, como escolas, igrejas e faculdades.
“Nós temos o projeto Ronda para Homens, que é uma palestra que é realizada e aplicada exclusivamente para homens, para esse processo da reflexão do seu comportamento, que muitas vezes ele não internaliza como uma violência, mas que ele precisa ser instado a pensar nas suas práticas”.
A Ronda Maria da Penha funciona todos os dias, de domingo a domingo. Além disso, as vítimas também podem buscar o atendimento da Polícia Militar pelo 190, caso haja alguma intercorrência antes ou depois da visita da operação.
“A nossa periodicidade está muito relacionada à necessidade da mulher, ou melhor, às investidas por ventura dos agressores. Mas para além dessa atividade também de visita, a gente faz acompanhamento oficial de justiça, o afastamento do homem do lar, ou a recondução da mulher ao lar dela, que são atividades também voltadas para esse suporte da mulher em situação de violência”. Texto extraído na íntegra do portal g1/BA.