Por Rinaldo Rossi*
Pano de fundo:
As bases materiais históricas dessa mitificação estão na realidade da técnica atual. A técnica apresenta-se ao homem comum como um mistério e uma banalidade. De fato, a técnica é mais aceita do que compreendida.(…) Tais características alimentam seu imaginário, alicerçado nas suas relações com a ciência, na sua exigência de racionalidade, no absolutismo com que, ao serviço do mercado, conforma os comportamentos; tudo isso fazendo crer na sua inevitabilidade.
(Milton Santos, Por uma Outra Globalização)
Vivemos uma conjuntura particular e complexa, de modo que diversos são os esforços de traçar análises no campo da mídia, da ciência e da política. Este texto insere-se como mais uma iniciativa de contribuir ao debate sobre as participações políticas, em pleno século XXI. E a muitos, e a mim mesmo, surpreende uma aparente apatia na participação política, conviver, no Brasil, com manifestações de massa, que envolvem número quase incontável de pessoas. Por isso a importância de analisar elementos mobilizadores, restando àqueles compromissados com fortalecimento das políticas sociais e de governos democráticos, o desafio de mobilizar e conscientizar as pessoas em torno de pautas que ampliem a justiça social, por meio de mudanças estruturais nos valores praticados cotidianamente pelas pessoas e pelas instituições públicas.
Essas questões foram abordadas em artigo no livro Ensaios de Junho, questões que são alvo de análise pelo um geógrafo brasileiro Milton Santos, em diversas obras. Uma combinação de dois fatores deve embasar uma leitura da conjuntura política-social contemporânea. O primeiro refere-se ao lugar do trabalho e do trabalhador no sistema econômico hoje. Podemos tranquilamente generalizar mais a problematização. Como encontra-se o jovem, a jovem, o trabalhador e a trabalhadora em meio à complexidade do mundo atual? Santos reflete acima sobre relativa perda de referência, identidade e firmeza político-cultural diante do gigante aparato técnico-cientifico-coorporativo. Não à toa, a contracultura que difunde-se no bojo do neoliberalismo – falo de hip hop, rock, reggae e outras – corriqueiramente refere-se a inimigos genéricos, a uma suposta luta contra o “sistema”. A visão se reforça na divisão do trabalho atual, impondo uma perda de consciência do trabalhador atual sobre o produto do seu próprio trabalho. Esses elementos contribuem com a inquietude e generalizado o clima de apatia.
Por outra via, observamos manifestações – com as mais diversas pautas – ganharem projeções impensáveis e mobilizar centenas de milhares de pessoas, confirmando o que ainda no início do século Santos instituía como ‘Período Popular da história’. A eclosão destas numerosas ações populares seriam necessariamente influenciadas pela questão urbana. Neste ponto, inúmeros autores já definiam a cidade como palco preferido das revoltas políticas da história. Para David Harvey***, por exemplo, é por meio das manifestações que as pessoas – organizadas a partir de seus grupos – exercem o direito à cidade, e tendo ela poder administrativo sobre territórios ainda mais amplos, tornam-se palco de conflitos em escalas ainda maiores, regional, estadual, nacional e internacional. O crescimento exponencial da população urbana e a comunicação globalizada e cotidiana tornam as cidades metropolitanas da segunda década do século XXI verdadeiros pavios de pólvora. E a frequência de manifestações em todo o mundo dão ao sentimento de impotência do povo perante um sistema uma boa dose de coragem e ousadia.
Desvios no retrovisor
A implicação é que nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. O direito à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias, quer estejamos cientes disto ou não.
(Harvey, em A Liberdade da Cidade – 2008)
É bastante proferido por parte de maduros ou iniciantes da esquerda, do campo progressista e democrático-popular, o discurso retroativo, de retorno. Da necessidade dos jovens, dos movimentos ou dos partidos se comportarem como no período do ascenso popular da década de 70-80 no Brasil, quando surgiram o PT, a CUT e inúmeras outras organizações, responsáveis por um novo pacto político e por conseguintes conquistas populares que asseguraram direitos, reduziram desigualdades, trazendo novos desafios.
É inegável o papel do retrovisor na condução de um veículo, assim como a observação destes fatos históricos é fundamental numa projeção tática-estratégica de princípios que devem balizar a organização da sociedade, revelando práticas a serem banidas nas instituições por terem gerados danos irreversíveis à sociedade. Sendo assim, a vista do retrovisor deve ser apurada, nem rachada ou embaçada, e ao observador cabe saber que ali reside mais de um ponto cego e que, portanto, aquele espelho, é apenas um instrumento auxiliar.
O que para alguns parece evidente é que a tática de retorno ao passado, assim como o discurso simplista de defesa do projeto democrático e popular com base em seus resultados nos últimos anos, já não é mais suficiente para articular corações e mentes em prol de uma ocupação estratégica da disputa urbana, que hoje, com maior centralidade ainda, concentra o domínio ideológico, informacional e político que orienta políticas de caráter nacional e regional. Este raciocínio não anula o papel da luta no campo e no rural, e não diminui a centralidade que tem as lutas setoriais, pré-organizadas por suas entidades representativas e seus agentes políticos.
O caráter eminentemente de massas dos movimentos observados no primeiro quadrante do século XXI no Brasil revelam algumas tendências tais quais: a) Pautas as mais diversas, ou até mesmo difusas, podem ser motivo de mobilização; b) Em geral os movimentos não são dirigidos por grupo de organizações; c) Cenários de pressão e acirramento geram depredação de bens públicos e privados; d) O planejamento cumpre papel secundário na organização.
Se essas tendências de fato são comuns aos movimentos desde os primeiros 2000, nos dão base razoável para refletir que há caminho aberto para aprofundar uma agenda popular com as manifestações, porém as organizações políticas de largo acúmulo devem assumir novos papéis, associando-se a novas formas de organização, agentes políticos e discursos. Unificando-se em torno de pautas positivas que envolva a sociedade e não apenas recortes de cunho governamental ou estatal – seja a posição contrária ou favorável. Esta prática passa a ser decisiva para a real promoção da igualdade e coloca a necessidade de um mutirão político que restabeleça a agenda democrática e popular nas ruas brasileiras, inclusive das periferias e nas zonas rurais, até porque não se trata de apenas convencer os agentes políticos, mas de reverter o conservadorismo que vem crescendo no seio da sociedade brasileira.
A renovação dos agentes políticos, no campo da institucionalidade e dos movimentos sociais, bem como a conjuntura de relativo encolhimento das forças progressistas e de esquerda nos coloca a tarefa de executar táticas diferenciadas. Portanto a construção de frentes amplas, as lutas descentralizadas e as grandes manifestações em torno de pautas unificadas podem gerar um novo caldo político social no país que dê conta de diminuir pensamentos e práticas conservadoras. Temas como redução da maioridade penal, reforma política, genocídio do povo negro, direito a mobilidade, direitos lgbts, meio ambiente, redução da jornada de trabalho, fim do fator previdenciário, o combate a violência machista, e tantos outros podem unificar a população em torno de um trabalho comunitário e social que venha a oxigenar as lutas por mais direitos.
*Rinaldo Rossi é dirigente do PT de Salvador