Uma adolescente agredida com socos e tentativa de estrangulamento, depois que o policial que comandava uma ação qual ela estava envolvida deduziu estar sendo filmado teve denúncia recebida pela Associação Bahiana de Imprensa (ABI). O fato aconteceu no dia 21 de julho, quando três policiais invadiram uma casa no bairro do Alecrim, na cidade de Milagres, no centro-sul da Bahia, em busca da adolescente em questão, de iniciais Y.S., de 15 anos. O fato reforça uma antiga preocupação da entidade e reacende a discussão sobre o direito ao acesso à informação de interesse público e à liberdade de expressão. Afinal, é crime registrar a atuação policial? Qualquer pessoa pode filmar em via pública, mesmo não sendo um jornalista?
A repetição das violações que agentes policiais do Estado têm praticado, especialmente contra profissionais de comunicação, foram alvo da ABI em junho de 2013, quando a associação cobrou apuração rigorosa por parte das autoridades. Em 2015, chegou à ABI a denúncia de Marivaldo Filho, repórter do site Bocão News agredido por fotografar uma abordagem policial. Assim como o jornalista, a mãe da garota do caso de Milagres também postou nas redes sociais o seu desabafo. O texto dela traz um combo assustador, que envolve acusações de abuso de autoridade com agressão, invasão de domicílio, violação de privacidade, violência contra a mulher e contra adolescente, além de injúria racial.
“Deu murro nela, enforcou e ainda chamou de vagabunda”, disse Veronica Pereira, sem esconder a tristeza. Ela ainda explicou que se tratava de uma menor, na tentativa de fazê-lo parar. Mas foi agredida também. “Não consigo tirar da cabeça. Fico vendo minha mãe toda machucada, sem poder fazer nada”, disse Y.S.. Desesperada, a professora de jardinagem e horticultura retrucou que conhecia os seus direitos. Humilhação. “Que direitos você tem, sua preta? Eu vou te dar seus direitos”, teria respondido o PM. Além de levar uma surra, foi humilhada verbalmente e ameaçada. “Você não imagina como a gente está sofrendo. Ser tratada mal, apanhar, quando tem tanto bandido por aí”, lamentou.
Segundo ela, que ainda amamenta seu bebê de um ano, a família foi mantida sob o poder dos policiais, enquanto as duas sofriam agressões presenciadas por sua mãe, uma senhora hipertensa e diabética de 69 anos, e seu filho de 14. O policial apontado como autor da agressão é o Capitão Gutemberg, da 3ª CIA do 11º BPM (Itaberaba), que realizava patrulhamento no bairro. Ele avistou Y.S. na porta de casa com um celular na mão e se irritou com a possibilidade de ter registrada sua abordagem a jovens que jogavam bola na quadra de esportes. Mandou a adolescente digitar a senha para desbloquear o aparelho. Vasculhou todo o conteúdo, inclusive mensagens do WhatsApp.
O policial constatou, no entanto, que não havia gravação. Um morador de Milagres que não quis se identificar disse que “o policial é violento e não quer ser filmado, porque comete abusos”. Em um vídeo divulgado na internet (assista aqui), o policial aparece dando socos em outra menina, de 14 anos, durante a comemoração da vitória do atual prefeito da cidade.
O que diz a lei
O advogado Yuri Bastos, especialista em Direito Penal, explica que não há qualquer vedação legal para que uma pessoa possa filmar agentes públicos no exercício de suas funções. Mesmo que a adolescente estivesse registrando a ação, ela não poderia ser agredida. “Todo cidadão tem a faculdade de filmar em espaço público qualquer fato que interesse a sociedade”. A exceção, segundo ele, é se houver risco para quem registra e o agente pedir afastamento do local, onde a recusa pode configurar crime de desobediência.
Para o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA, Eduardo Rodrigues, em se tratando de um representante do estado, “a impossibilidade de registro só é justificável nos casos de investigações protegidas pela justiça”. Ele lembra que, em alguns países, policiais trabalham com câmeras acopladas aos uniformes (as chamadas “body-cams”), “para dar transparência às ações e resguardar o agente em caso de falsa acusação”. No Brasil, a polícia de São Paulo criou um projeto-piloto com as câmeras individuais.
“Em caso de agressão, não basta divulgar nas redes sociais, é preciso romper o silêncio e procurar as instituições competentes”, alertou. Segundo ele, o primeiro passo é denunciar. Um direito que foi negado a Veronica. Ela conta que procurou a delegacia no mesmo dia para fazer o Boletim de Ocorrência (B.O.). Lá, foi orientada a retornar depois do final de semana. Seguiu para o hospital, mas não pode fazer o exame de corpo de delito, uma vez que não tinha a guia fornecida pela polícia. Um áudio a que a ABI teve acesso registra o momento em que Veronica volta à delegacia, já no dia 26, e recebe a segunda negativa.
“Essa situação não é aqui o local. É no Ministério Público (…). Venha na hora em que o delegado esteja. Eu não tenho autonomia para fazer isso, eu sou escrivão”, afirmou o funcionário identificado como “Junior”. Na noite de sábado (29), Veronica tremeu ao ver a viatura passar por sua rua. Do banco do carona, o capitão olhou para ela e riu. “Ele passou, debochando de mim. Aí, eu tive medo e decidi procurar a delegacia de novo”. No dia 31, dez dias após a agressão – que seguia sem qualquer registro oficial –, ela conseguiu falar com o delegado em Milagres. Em seguida, buscou ajuda do Ministério Público, em Salvador, onde protocolou a denúncia e voltou ao interior. As polícias Civil e Militar, e a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) se manifestaram através de notas oficiais, esta última afirmou que determinou a apuração dos fatos.
CONFIRA AS NOTAS:
Secretaria da Segurança Pública
A Secretaria da Segurança Pública determinou a apuração rigorosa das denúncias de agressões realizadas por um policial militar que atuava no município de Milagres. As polícias Civil e Militar já foram acionadas e cada instituição, dentro de sua atribuição, já iniciou a investigação do caso, que também é acompanhado pela Corregedoria Geral da Secretaria da Segurança Pública.
Polícia Militar
O oficial da PM foi afastado das atividades do município de Milagres pelo Comando do 11º Batalhão. A unidade abriu um procedimento investigatório para a apuração da denúncia e atuará junto com a Delegacia Territorial do município para que sejam adotadas as medidas administrativas pertinentes ao caso.
A Polícia Militar esclarece que o cidadão tem o direito de fazer imagens do policial no exercício de função pública, e caso seja comprovada a postura inadequada do integrante da corporação, ele também responderá por abuso de autoridade.
Polícia Civil
A Delegacia Territorial (DT) de Milagres já instaurou inquérito para apurar as denúncias de agressões feitas por policiais militares contra uma mulher e sua filha, no dia 21 de julho, naquela cidade. A denunciante compareceu na última segunda-feira (31) à unidade e fez o boletim de ocorrência, depois de recebida pelo delegado titular Ricardo Domingos Ribeiro, com quem conversou, narrando o episódio.
Foram expedidas guias para a realização de exames de corpo de delito, no Departamento de Polícia Técnica (DPT). A mulher já havia comparecido, anteriormente, à unidade em duas ocasiões para fazer o registro. Na primeira, após as 18 horas, quando as ocorrências na região são feitas apenas no Plantão Central, em Itaberaba. A Polícia Civil também apura as causas pelas quais o escrivão da unidade não realizou o registro de ocorrências na segunda tentativa da vítima, que foi orientada a retornar quando o delegado estivesse presente, embora esta não seja a recomendação da Polícia Judiciária. Jornal da Chapada com informações da ABI.