Autor da reforma psiquiátrica, lei que propôs a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país, o sociólogo e ex-deputado federal Paulo Delgado afirmou à Agência Brasil que não acredita em retrocessos na atual política de saúde voltada a essa parcela da população. “Não acredito que o governo brasileiro tenha interesse de retornar a uma situação do manicômio comercial, do hospital comercial e da internação com interesses econômicos, em que você transforma o paciente em uma cifra econômica e interna num serviço remunerado e deixa ele ali, pelo resto da vida”, destacou.
“O manicômio é o abismo absoluto e a loucura mal entendida e explorada comercialmente é uma ignomínia”, reforçou o sociólogo. Durante esta semana, diversos especialistas têm se encontrado, em reuniões de portas abertas às comunidades, para debater avanços e retrocessos da reforma psiquiátrica, aprovada com a Lei nº 10.216/2001. Em alusão à aprovação da lei, hoje é lembrado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. O movimento começou a ser organizado na década de 1970 e hoje tem com uma das principais frentes de mobilização a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), responsável por divulgar os eventos relacionados à data, como rodas de conversa e atividades culturais, que ocorrem até amanhã (19), em todo o país.
Vulnerabilidade
Segundo Delgado, alguns governantes entendem que o setor mais vulnerável da população brasileira é o de pessoas com transtornos mentais e é por esse motivo, além da confiança em um controle social, que ele mantém a esperança de que o país irá avançar nas políticas para essa parcela da população. Especialista em Ciência Política, ele afirma que os gestores municipais podem ajudar a refrear eventuais tentativas de cancelamento de direitos humanos, no âmbito da saúde mental. “Nós temos experiência e acúmulo de conhecimento suficiente no movimento nacional da luta antimanicomial para, talvez, procurar outros interlocutores igualmente importantes como o governo federal, que seguramente é o mais importante deles, mas lá nos municípios. Nós temos prefeitos que estão inaugurando Caps.”
Delgado, que apresentou o projeto de lei da reforma psiquiátrica em 1989, resume seu trabalho como “uma luta generosa”, que pensa em novas conexões para um tratamento eficaz dos transtornos de fundo psíquico, formada por pessoas que se dispõem a ser um “polo de reflexão crítica e humanista, sem abandonar os valores técnicos”. Ele recorda que, nos anos 1990, quando era parlamentar, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados organizou uma caravana que percorreu o Brasil para conhecer manicômios e hospitais psiquiátricos.
“Com o apoio da luta antimanicomial da época, a caravana identificou a violência dos manicômios e isso acabou em um grande processo no Ministério Público, denúncia na Organização Mundial da Saúde, no Tribunal de Haia [Tribunal Internacional de Justiça ou Corte Internacional de Justiça, o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas (ONU)]. Então, não tenho receio”, afirmou. Apesar do otimismo de Delgado, a aprovação, pelo Senado, na última quarta-feira (15), de uma lei que autoriza a internação involuntária de usuários de drogas por até três meses acendeu o alerta do movimento antimanicomial.
Na avaliação da psicanalista Thessa Guimarães, a medida, quando compulsória, é ilegal. “A liberdade é um direito, não um dever”, complementa. Presente em uma audiência da Câmara dos Deputados, realizada no último dia 10, um dos representantes da Rede Nacional da Luta Antimanicomial, Lúcio Costa, destacou que 103 hospitais psiquiátricos ainda funcionam no Brasil, sendo que a maioria (64%) é privada.
Política Nacional de Saúde Mental
Em fevereiro deste ano, uma nota técnica do Ministério da Saúde que autorizava, entre outros procedimentos, a compra de aparelhos para aplicação de eletrochoque em pacientes com distúrbios mentais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), provocou a reação de diversas entidades representativas de profissionais da área.
O Conselho Federal de Psicologia manifestou repúdio à nota técnica informando que o teor do documento aponta um retrocesso nas conquistas estabelecidas com a reforma psiquiátrica, considerada pela entidade marco na luta antimanicomial, e incentiva um retorno à lógica manicomial. Já o Ministério da Saúde explicou que a nota estava em análise e a medida não estava em vigor.
Em entrevista à Agência Brasil, o secretário-executivo substituto, Enro Harzheim, afirmou que a nota técnica “reforça a abordagem comunitária como prioritária no tratamento de sofrimentos psíquicos e da dependência química, mas também corrige alguns problemas de rumos anteriores da Política Nacional de Saúde Mental”.
“A abordagem de saúde mental que o ministério defende é uma abordagem individualizada, em que cada pessoa é vista no seu contexto, das suas necessidades, frente ao seu problema de saúde e, para ela, deve ser ofertada a intervenção que mais efeito tem para lhe trazer melhoras sobre seu sofrimento, seus sintomas, e, se sua situação é mais grave, a reinserção social mais rápida possível dessa pessoa”, explicou.
“Para algumas pessoas com dependência química, as comunidades terapêuticas são um equipamento muito importante para a abstinência do uso de álcool e outras drogas e também para a sua reinserção social, tanto na família como nas suas atividades cognitivas”, destacou. Da Agência Brasil.