Empresas privadas com ou sem fins lucrativos já são responsáveis por 73% dos 3.013 serviços públicos de saúde, como hospitais e unidades básicas, presentes nos 5.570 municípios brasileiros.
A grande maioria (58%) está sob gestão de OS (Organizações Sociais), entidades sem fins lucrativos, e 15% nas mãos de empresas privadas, por meio de modelos como as PPP (Parcerias Público-Privadas), mencionadas em decreto revogado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na semana que passou.
Os dados são da Pesquisa de Informações Básicas Estaduais, divulgadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano passado.
Em municípios com mais 500 mil habitantes, a gestão da saúde é realizada majoritariamente por organizações sociais (83,3%), criadas por lei federal há 22 anos. Em 2015, duas decisões do Supremo Tribunal Federal entenderam que estas são constitucionalmente permitidas e não afrontam os princípios do SUS.
Hoje as OS estão presentes em 24 dos 26 estados brasileiros. Administram a atenção básica, ambulatórios e hospitais. Em São Paulo, são 26 OS que, juntas, recebem cerca de R$ 6 bilhões por ano. Só no município de São Paulo, em 2019, elas consumiram 38% da fatia do orçamento da saúde —4,3 bilhões de 11,4 bilhões. A atenção primária ficou com R$ 3,8 bilhões.
As PPP na saúde são mais recentes e ainda mais restritas a hospitais. A primeira delas data de 2010, com a construção do Hospital do Subúrbio, em Salvador (BA), na gestão do então governador Jacques Wagner (PT), hoje senador.
Em Belo Horizonte (MG), 40 centros de saúde estão sendo construídos por de uma PPP entre a prefeitura e a Concessionária Saúde BH, ligada à OEC (Odebrecht Engenharia & Construção). O investimento é de R$ 215 milhões, e a concessão tem prazo de 20 anos.
A empresa será responsável pela prestação de serviços não assistenciais, como limpeza, manutenção predial, segurança. A assistência segue a cargo da prefeitura.
O modelo de PPP prevê que a empresa parceira explore os serviços administrativos do hospital, tais como limpeza, segurança e lavanderia.
No estado de São Paulo, o primeiro hospital construído por meio do modelo de PPP é o Hospital Regional de Sorocaba, inaugurado há dois anos.
Os serviços assistenciais, como consultas, cirurgias e outros atendimentos, ficam a cargo de uma OS, a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), uma das maiores do país.
Segundo o advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, nesse modelo de PPP vigente na saúde, a concessão administrativa, a empresa não pode cobrar do usuário. Ela é financiada pelo poder público para prestar o serviço.
O lucro vem de outros serviços explorados, como os de logística, restaurantes e estacionamento. Ou mesmo de eventuais ganhos obtidos por meio de mais eficiência.
No caso das OS, se houver sobra de caixa, a prefeitura abate do valor no repasse do mês seguinte. Já nas PPP, o lucro fica com a empresa.
Para Dourado, o decreto não deixou claro como as empresas teriam lucro numa eventual PPP na atenção primária. “É um serviço que não é autossustentável, não tem margem [de lucro]. Pelo contrário, precisa de mais recursos.”
Segundo ele, toda a confusão pode ter sido um balão de ensaio para algo.
“Foi tudo muito esquisito. Primeiro por nem ter tido participação do Ministério da Saúde, segundo por estar no PPI, que é um programa de privatização. A questão é que privatização da saúde pública não tem como, seria inconstitucional.”
Na opinião do professor Mario Scheffer, do departamento de saúde preventiva da USP, o decreto não pareceu visar itens de negócios já previstos no modelo das OS ou das PPP.
“Podem ser novos negócios do setor privado, como telemedicina e teleconsulta, tecnologia da informação.”
Ele lembra que como as OS hoje dominam a gestão da saúde pública no Brasil, qualquer novo ator nesse cenário terá que envolver parcerias com essas organizações.
Para os municípios que enfrentam grave crise financeira, a grande vantagem do modelo das OS é a terceirização da contratação de pessoal. Eles se livram de contabilizar os gastos com pessoal, driblando assim, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe que as cidades de gastar mais do que 60% do que arrecadam com recursos humanos.
Levantamento da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) aponta que 70% dos municípios terceirizam a mão de obra, embora a Constituição determine que as vagas sejam preenchidas por concurso público. Desse total, apenas 10% registram esse gasto como despesa pessoal.
No município de São Paulo, 25 OS são responsáveis por 65% dos recursos humanos da saúde. Dos 13 mil médicos da rede municipal, 9.000 são contratados por meio de OS.
Para Scheffer, a questão crucial envolvendo as OS hoje é que, embora movimentem bilhões em verbas públicas, não conseguem resolver os problemas cruciais da saúde pública, como a falta de médicos, as filas de espera e as disparidades nos indicadores.
“São Paulo tem 60 mil médicos. Como pode elas não conseguirem contratar médicos? A rotatividade é imensa. O médico fica dois, três meses e já sai. Como se mantém uma atenção primária eficiente dessa forma?”, questiona.
Em São Paulo, o tempo de espera para uma consulta em oftalmologia pediátrica chega a três anos. Para um otorrino, dois anos, o mesmo tempo para agendar uma cirurgia vascular ou no ombro.
Os indicadores de saúde também mostram discrepâncias regionais. Por exemplo, as mortes por diabetes, cujo manejo é de responsabilidade da atenção primária, variam de 8/100 mil habitantes em Santa Cecília (centro de SP) para 30/ cem mil na região de Parelheiros (extremo sul).
Além disso, muitas OS no país estão sob a mira de operações policiais e de CPIs por fraudes nas contratações e desvio de dinheiro público.
Na Operação Raio-X, a Polícia Civil de São Paulo cumpriu ao menos 66 mandados de prisão e 275 de busca de apreensão em cinco estados (Paraná, São Paulo, Pará, Minas e Mato Grosso do Sul). O esquema de corrupção envolve agentes públicos, empresários e profissionais liberais.
“É um volume muito grande de contratos. Aumentou muito a rede sob responsabilidade das OS e não foi desenvolvido um mecanismo de controle”, diz Scheffer.
Atualmente, está em curso na Assembleia Legislativa de SP uma CPI, das Quarteirizações, espécie de segunda fase de outra CPI de 2018. A ideia é aprofundar as investigações de subcontratos firmados pelas OS com prestadores de serviços, com termos vagos e pouca transparência.
O deputado Edmir Chedid, que preside a atual CPI, entende que, aos 22 anos da lei, novas demandas surgiram, e a legislação precisa acompanhar as transformações. “Sob o risco de, daqui algum tempo, chegarmos ao extremo do Rio, que resolveu banir as OS.”
Em 2018, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) chegou a publicar uma resolução determinando que todas as OS contratadas pelo estado e pelas prefeituras paulistas abrissem seus dados para consulta pública. Informações sobre salários, contratos com o poder público e com prestadores, entre outros.
“Passados dois anos, pouca coisa mudou. A maioria das OS não aceita a ter que prestar contas de seus atos à sociedade, embora sejam mantidas com dinheiro público.”
No Rio, das dez OS que atuam no município, oito são investigadas por corrupção. Uma lei estadual prevê a extinção do modelo a partir de 2024. Uma comissão da Assembleia Legislativa quer antecipar o fim para até 2022.
Para o médico sanitarista Renilson Rehem de Sousa, presidente do Ibross (Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde), que representa 20 das maiores OS brasileiras, surgiram instituições criminosas disfarçadas de OS.
Segundo ele, gestores públicos respondem pelo processo de qualificação e as escolhas. “Não dá para responsabilizar o modelo de OS pela corrupção. Corrupto é o gestor.”
Para Sousa, o poder público deve melhorar mecanismos de controle. “Ele tem o dever de construir parcerias com organizações sérias e responsáveis, firmar contratos de gestão claros e transparentes, monitorar o trabalho executado e estabelecer as metas assistenciais e de qualidade”. As informações são da Folha de S. Paulo.