Um relatório da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União), concluído na noite da última quinta-feira (6), aponta que o sistema de saúde das Forças Armadas é financiado em até 88% com recursos públicos e que apenas 27,7% dos usuários desse sistema são militares da ativa. Por isso, o documento sugere que o Ministério da Saúde seja obrigado a requisitar leitos de enfermaria e de UTI que estejam ociosos em hospitais militares, de forma a atender civis com Covid-19 em momentos de colapso da rede pública na pandemia.
O Ministério da Defesa, conforme conclusão do relatório, deve firmar convênios com o SUS para disponibilizar essas vagas na rede pública de forma emergencial e temporária, também nas situações de colapso. O documento foi enviado nesta sexta (7) ao ministro Benjamin Zymler, relator de um processo no TCU que investiga supostas irregularidades na reserva de vagas em hospitais militares. Esses leitos ficam bloqueados à espera de militares e seus dependentes.
Zymler já havia determinado em março, em medida cautelar, a abertura dos dados de ocupação dos leitos, mantidos em sigilo até então. O ministro pode decidir sozinho sobre o compartilhamento de vagas com civis, sugerido pela área técnica, ou pode levar a questão ao plenário. Antes, ele pediu a opinião do Ministério Público junto ao TCU.
Segundo o relatório técnico, recursos públicos financiam 65% do sistema de saúde do Exército, 77% do sistema da Aeronáutica, 78% na Marinha e 88% dos gastos do HFA (Hospital das Forças Armadas), em Brasília, unidade que atende também o presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e ministros de Estado. “Os dados, assim, fragilizam o argumento de que os sistemas seriam custeados predominantemente com contribuições de seus beneficiários”, afirma o documento.
Os militares informaram ao TCU que os recursos públicos financiam apenas 30% do sistema de saúde do Exército e 47% dos sistemas de Aeronáutica e Marinha. “As estimativas não são realistas”, segundo o relatório técnico, uma vez que foi levada em conta apenas uma ação orçamentária. Os militares não levaram em conta, por exemplo, o gasto público com o pessoal empregado nos hospitais militares.
Também desconsideraram ações orçamentárias como a voltada ao combate à pandemia. As autorizações de gastos para as unidades de saúde, levando em conta somente essa última ação, chegam a R$ 124,5 milhões.
O TCU estimou um gasto de R$ 4,8 bilhões com os serviços de saúde oferecidos pelos hospitais militares das Forças Armadas. Desse total, R$ 3,45 bilhões (71%) são recursos públicos e R$ 1,38 bilhão (29%), privados, a partir de contribuições dos militares. O Ministério da Defesa também informou ao TCU que os hospitais militares atendem 1,34 milhão de beneficiários. Desse total, 370 mil são militares da ativa, ou 27,7%.
“72,3% dos beneficiários são estranhos às atividades institucionais das Forças, o que prejudica o argumento apresentado de que eventual alta na demanda por leitos resultaria em comprometimento à realização de atividades de defesa nacional”, afirmam os técnicos do tribunal.
O relatório cita que o governo do Distrito Federal pediu acesso a vagas em hospitais militares, o que foi negado. Ainda persiste uma fila de pacientes com Covid-19 à espera de um leito de UTI na rede pública de saúde no DF: são 26, conforme dados atualizados na tarde desta sexta (7). Para os técnicos do TCU, não há risco à soberania e à segurança nacional em caso de compartilhamento de leitos dos hospitais militares com a população em geral para tratamento da Covid-19.
“Nem sequer os médicos e enfermeiros, aqueles que realmente atuam no front da crise, arriscando suas vidas, também considerados essenciais pela legislação mencionada pelo Ministério da Defesa, possuem reserva de leitos financiados com recursos públicos para o caso de ficarem enfermos, mesmo tendo contato direto com altas cargas do patógeno”, afirma o relatório técnico.
O documento afirma ainda que, apesar de contarem com um sistema exclusivo, os militares também são atendidos no SUS e têm acesso ao sistema privado de saúde. Uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em 6 de abril mostrou que a ociosidade de leitos de enfermaria em hospitais militares chegava a 85%, a partir dos dados abertos por Exército, Aeronáutica, Marinha e HFA, em cumprimento à decisão do TCU.
Leitos de UTI estavam lotados em sua grande maioria. Mas havia disponibilidade em três hospitais do Exército. No último dia 29, o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, disse em uma audiência no Senado que não existiam leitos ociosos nos hospitais militares. O ministro defende que o sistema de saúde das Forças Armadas não é público e que não há razão para compartilhamento de vagas na pandemia.
Naquele mesmo dia, havia leitos de UTI ou emergenciais desocupados em 17 hospitais de Exército, Aeronáutica e Marinha e no HFA, como revelou uma reportagem da Folha publicada no último dia 4. Em Brasília, por exemplo, havia dez leitos de UTI disponíveis no HFA e mais cinco no HFAB (Hospital de Força Aérea de Brasília).
Enquanto isso, conforme números atualizados pelo governo do DF naquele dia, 31 pacientes com Covid-19 esperavam por um leito de UTI na rede pública de saúde na capital federal. Na noite do dia 5, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência de um projeto de lei que destina leitos ociosos em hospitais militares a civis à espera de atendimento. A reportagem questionou os Ministérios da Defesa e da Saúde sobre os apontamentos do relatório do TCU, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. A redação é de Vinicius Sassine da Folhapress.