O esquema montado pelo governo Bolsonaro para conquistar apoio por meio de um orçamento secreto de R$ 3 bilhões não apenas será alvo de investigação no Ministério Público e no Tribunal de Contas da União (TCU) como parlamentares já falam até mesmo na criação da “CPI do Tratoraço”. O jornal Estado de S.Paulo revelou que o presidente Jair Bolsonaro entregou para um grupo de deputados e senadores o direito de impor onde seriam aplicados bilhões de reais, provenientes de uma nova modalidade de emendas, chamada RP9.
Documentos aos quais o jornal teve acesso comprovam que congressistas usurparam funções do Executivo. Pelo acordo, deputados e senadores demandaram a compra de tratores e outras máquinas agrícolas, indicando até mesmo preços que chegaram a até 259% acima dos valores de referência fixados pelo próprio governo.
Bolsonaro vetou a tentativa do Congresso de definir a aplicação dos recursos das emendas RP-9. O presidente considerou que isso contrariava o “interesse público” e estimulava o “personalismo”. Um conjunto de 101 ofícios aos quais o Estadão teve acesso mostra, porém, que Bolsonaro ignorou o seu próprio ato e entregou nas mãos de sua base de apoio o destino de R$ 3 bilhões do Ministério do Desenvolvimento Regional. Aquele veto, porém, nunca foi derrubado.
Além disso, o presidente também aumentou a área de atuação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), uma estatal controlada pelo Centrão, que vai aplicar os recursos do orçamento secreto conforme as indicações dos parlamentares. Na prática, Bolsonaro deu o dinheiro e a caneta para seus apoiadores.
Nesta segunda-feira, 10, o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) iniciou a coleta de assinaturas para pedir ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com o objetivo de investigar o direcionamento de R$ 3 bilhões do orçamento pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. Para entregar o requerimento de CPI a Lira, Valente precisa da assinatura de 171 deputados.
“A criação de orçamento paralelo com execução condicionada à indicação de parlamentares que votam com o governo configura verdadeira compra de votos e fere gravemente a autonomia do Poder Legislativo e a separação de poderes assegurada na Constituição”, disse Valente no requerimento de abertura de CPI. Ao Estadão, o deputado afirmou que a situação é “gravíssima”. “Quem não deve, não teme. Não falaram que não tem corrupção no governo Bolsonaro? Vamos para cima”, disse Valente.
Com o orçamento secreto, o governo negociou apoio para as candidaturas de Arthur Lira à presidência da Câmara e de Rodrigo Pacheco ao comando do Senado, em fevereiro. No modelo adotado pelo governo para atender aos parlamentares, a Codevasf virou a “estatal do Centrão”. A empresa foi loteada e, a pedido de parlamentares, sua área de atuação incluiu mil novos municípios, muitos deles localizados a mais de 1.500 quilômetros das águas do rio São Francisco.
O líder da bancada do Novo na Câmara, deputado Vinícius Poit (SP), disse que seu partido também insistirá na apuração das irregularidades. “Enviaremos representação ao TCU para investigar o tal orçamento secreto do governo, com indícios de compras superfaturadas de equipamentos agrícolas para aumentar a base de apoio na Câmara”, afirmou Poit, em mensagem publicada no Twitter. “O dinheiro do pagador de impostos precisa ser respeitado e usado com responsabilidade”.
O PSOL fez, ainda, uma representação contra Bolsonaro, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o diretor da Codevasf Marcelo Pinto, solicitando a abertura de uma investigação pelo Ministério Público. “É inadmissível que, na pior crise sanitária, social e econômica do mundo, com a população brasileira morrendo de fome, de covid-19 e de tiro, o presidente use de corrupção para conseguir que seus aliados ganhem as eleições para a Câmara e o Senado. No entanto, não nos surpreende. Bolsonaro é a mais velha forma de fazer a política do toma-lá, dá-cá”, disse a líder do PSOL, Talíria Petrone (RJ).
Em sua conta no Twitter, o ministro Rogério Marinho admitiu que as indicações de uso dos recursos das chamadas emendas RP9 foram feitas pelos parlamentares. Disse, porém, que o governo não criou um orçamento secreto. Para exemplificar, ele citou o caso do senador de oposição Humberto Costa (PT-PE). Numa planilha secreta do ministério, obtida pelo Estadão, a indicação referida por Marinho consta como de autoria de “Davi Alcolumbre/Humberto Costa”.
À reportagem, Costa relatou ter sido procurado por Alcolumbre, então presidente do Senado e aliado do Palácio do Planalto, que lhe ofereceu a possibilidade de indicar verbas públicas do governo. “A RP9 é de indicação do Parlamento. Não quer dizer que seja só do Davi (Alcolumbre), não. É uma indicação, não tem negociação. O grande problema está nisso aí: esse governo não fez negociação com ninguém. O recurso estava à disposição do Parlamento para indicar, vários parlamentares indicaram. Foi uma indicação política para aplicação fiscalizada. Não tem nada de ilegal, não”, afirmou o senador Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso. A redação é do Estadão Conteúdo, via Política Livre.