A Polícia Federal (PF) vai instaurar um inquérito para apurar supostos acessos irregulares a dados fiscais de autoridades por auditores da Receita Federal. O tema é central numa das linhas de defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) para tentar anular a investigação do caso das “rachadinhas”.
A apuração vai ser aberta a partir de um relatório elaborado pelo TCU (Tribunal de Contas da União) que apontou casos do tipo identificados pela própria Receita, um deles envolvendo o senador. O diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, solicitou cópia do relatório ao tribunal no mesmo dia em que ele foi divulgado pela revista Veja, há duas semanas.
Embora a investigação seja de interesse do filho do presidente Jair Bolsonaro, a apuração sobre acessos indevidos também atende a desejo de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TCU que entraram em rota de colisão com a Receita.
Maiurino foi chefe da segurança da corte no período em que o ministro Dias Toffoli a presidiu e tem trânsito entre os magistrados.
O relatório do TCU afirma que a Receita identificou ao menos oito casos de acessos indevidos a dados fiscais de contribuintes entre 2018 e 2020, sendo seis deles pessoas politicamente expostas. O documento menciona, entre os alvos, o senador Flávio Bolsonaro.
De acordo com o documento, cada um dos casos gerou um processo administrativo, tendo quatro deles resultado em suspensão do servidor, e o restante ainda em trâmite.
Desde o ano passado a defesa do senador argumenta que seus dados fiscais foram acessados ilegalmente para fornecer informações do relatório ao Coaf, órgão de inteligência financeira que apontou as movimentações suspeitas de seu ex-assessor Fabrício Queiroz.
O documento é o pivô da apuração do caso das “rachadinhas”, que levou à denúncia contra Flávio sob acusação de peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Os advogados do senador acionaram a Receita, o Serpro (empresa estatal que detém os dados do Fisco) e até a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para identificar as supostas irregularidades.
A Receita realizou uma apuração especial para identificar os acessos aos dados do senador e de todo o entorno do presidente, mas o resultado da devassa não foi divulgado. O senador tenta na Justiça obter essas informações.
O objetivo é, caso identificado o acesso irregular e o vínculo com o relatório do Coaf, anular a apuração da “rachadinha” desde sua origem.
Atualmente, a denúncia já está em fragilidade em razão da anulação das quebras de sigilo determinada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). Contudo, as informações do relatório do Coaf seguem válidas e podem levar à reabertura do caso.
O TCU apura os acessos ilegais a dados fiscais há mais de um ano. A investigação foi aberta após a divulgação de uma apuração da Receita sobre o ministro Gilmar Mendes, do STF, e sua mulher, a advogada Guiomar Mendes.
O caso provocou ataques de Gilmar à força-tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro, a quem atribuía os acessos aos seus dados fiscais e de outros 133 agentes públicos e seus familiares.
Os procuradores negaram envolvimento no caso. Um dos auditores que tiveram acesso ao documento, Marco Aurélio Canal, citado por Gilmar em entrevistas, foi preso pela Lava Jato fluminense sob acusação de cobrar propina para anular autuações fiscais contra alvos da operação.
A Receita reconheceu que o ministro do STF foi alvo de apuração preliminar interna no órgão, mas rechaçou, em nota, “ilações de práticas de crimes” e disse que não havia procedimento formal de fiscalização sobre o magistrado.
O Fisco afirmou que abriu um procedimento para apurar os acessos e a divulgação dos dados, mas não há notícia de punição a eventuais servidores envolvidos.
O caso Gilmar gerou a abertura de um processo no TCU que concluiu em agosto do ano passado haver falhas da Receita para proteger informações obtidas em processos de fiscalização contra agentes públicos e apontou fragilidades que permitiram o vazamento de dados sigilosos sob sua guarda.
Os técnicos identificaram problemas nos mecanismos do Fisco para rastrear o uso inapropriado de informações —vazamento, por exemplo— e a escolha dos contribuintes a terem a vida fiscal vasculhada.
A abertura do processo provocou uma guerra entre o relator do processo, o ministro Bruno Dantas, e auditores da Receita Federal. Ele atribuiu à abertura da apuração uma intimação que recebeu para explicar despesas médicas de três anos atrás. A Receita afirmou que tinha como alvo o médico, e não o ministro.
De acordo com reportagem da revista Crusoé, Toffoli também entrou em rota de colisão com a Receita em razão de apurações fiscais sobre o escritório e advocacia da esposa do ministro, Roberta Rangel.
Possíveis acessos irregulares a dados fiscais também atingiram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo indicam mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas pela Folha e pelo site. Elas apontam que dados fiscais sigilosos eram obtidos informalmente por procuradores da Lava Jato.
No início de 2016, os procuradores usaram esse expediente com frequência durante as investigações sobre as reformas executadas por empreiteiras no sítio de Atibaia (SP) frequentado por Lula, caso que levou à sua segunda condenação na Justiça, depois anulada pelo STF. A redação é da Folhapress.