Cinco anos após o início do surto de casos da doença de Haff na Bahia, ainda não se sabe o que a provoca. Há quem diga que a também conhecida como doença da urina preta seja provocada pelo consumo de peixe ou somente pelo peixe olho de boi. Mas não é bem por aí. Segundo especialistas, não há comprovação científica de que a doença seja associada a um tipo específico de pescado e todos eles estão sob suspeita, incluindo alimentos como camarão, lagosta e lagostim.
A nefrologista Carolina Neves, médica do Hospital Cárdio Pulmonar e membro da Sociedade Brasileira de Nefrologia Regional Bahia, afirma que é prematuro descartar qualquer tipo de suspeita. “A gente imagina que a doença seja provocada por uma toxina presente em crustáceos e peixes que é resistente ao calor. Então não adianta cozinhar ou assar o alimento porque, na maioria dos casos registrados, não foram alimentos crus. E também tivemos casos tanto em peixes de criadouros quanto em peixes frescos”, coloca. Carolina também afirma que casos já foram registrados em diversos países e que ainda não há definição do que a provoca.
“A literatura científica diz que esses surtos da doença de Haff já foram registrados em várias partes do mundo, como Estados Unidos, Espanha e China. Mas, infelizmente, a gente ainda não conseguiu identificar que toxina é essa”, acrescenta.
A Bahia já possui 18 casos confirmados da doença. Os números foram atualizados com a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) na terça-feira (2). Os municípios de residência dos casos notificados são: Alagoinhas (5), Salvador (13), Maraú (1), Simões Filho (1), Mata de São João (1) e São Francisco do Conde (1). No ano passado, foram notificados 45 casos e confirmados 40, nos municípios de Salvador, Feira de Santana, Camaçari, Entre Rios, Dias D’Ávila e Candiba.
No total, são 22 casos notificados e quatro descartados. Os registros estão na faixa etária de 20 a 79 anos. A faixa mais acometida é de 35-49 anos com sete casos, seguida de 20-34 anos com cinco, de 50-64 anos com quatro e 65-79 anos com dois. Cerca de 66% dos contaminados são do sexo masculino.
A doença foi registrada pela primeira vez no início do século XX numa região do Mar Báltico conhecida como Haff. O primeiro relato de um surto no Brasil ocorreu em 2008, no Amazonas. O primeiro surto registrado na Bahia aconteceu entre 2016 e 2017, com 71 casos registrados em Salvador, Vera Cruz, Dias D’Ávila, Camaçari, Feira de Santana e Alcobaça. Somente na capital, foram 66 casos. Do total, duas pessoas contaminadas acabaram morrendo; uma residente em Salvador e outra em Vera Cruz, na Ilha de Itaparica. Já em 2018 e 2019, não houve notificações da doença relatadas pelas instituições de saúde.
A nefrologista Ana Flávia Moura, reforça que ainda não há definição sobre que tipo de pescado pode provocar a doença. “Até o momento, não sabemos que tipo de pescado provoca a doença de Haff. Temos coincidência de pessoas que desenvolveram a doença e consumiram um mesmo tipo de peixe, mas ainda sem comprovação de que o risco venha de só um tipo. Inclusive, camarões, lagostas, lagostins também estão sob suspeita”, destaca.
Segundo Ana Flávia, a recomendação é de que se tenha cuidado com o consumo de qualquer tipo de pescado, seja na forma crua, assada, frita ou cozida.
“O ideal é que seja um consumo em estabelecimentos confiáveis, que cumpram as recomendações das instituições sanitárias. E se a pessoa for comprar o pescado para cozinhar, que seja também em pontos comerciais de boa procedência, com atenção para a aparência, cheiro e a validade do produto”, alerta.
O comerciante Marcos dos Santos, que vende peixes e outros frutos do mar na barraca Marcos Pescados, em Lauro de Freitas, diz que as pessoas ficaram assustadas com o surto da doença em 2016 e 2017, mas que, desde o ano passado, com o novo surto, não notou ainda queda significativa nas vendas por conta disso.
“Em 2016 e 2017, a gente sentiu a queda de quase todos os tipos de pescado, as pessoas ficaram com medo mesmo. As vendas caíram entre 60% e 70%. Agora, com esses novos casos do ano passado para cá, o pessoal não deixou de comprar não. Mas a gente fica preocupado, eu busco ver a procedência dos lugares onde eu compro, a qualidade dos produtos e sempre os pescados novos”, diz o comerciante.
A Sesab informou que não há orientação para que a população evite o consumo de pescados. A recomendação é de que a população se certifique da qualidade do estabelecimento em que está consumindo ou comprando o pescado. Quem apresentar os sintomas da doença nas 24 horas após a ingestão de qualquer tipo de pescado deve procurar atendimento médico. Não é indicado o uso de antiinflamatórios, medicamentos que podem potencializar as lesões renais causadas pela doença. A Secretaria Municipal de Saúde de Salvador (SMS) não respondeu ao contato até o fechamento da reportagem.
A Bahia Pesca disse, em nota, que “acompanha com atenção os casos da doença de Haff que estão acontecendo no território brasileiro. A empresa está em contato constante com a Secretaria de Saúde da Bahia, que têm competência para se manifestar sobre segurança do consumo e, caso haja qualquer novidade, informará aos pescadores os procedimentos a serem adotados”.
Já a Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR), divulgou um comunicado em que defende que a “Tilápia e tambaqui criados profissionalmente, em cativeiro e com toda a segurança, não provocam a Síndrome de Haff (Doença da Urina Negra) em seres humanos”. A associação alega que “o pesquisador Roger Crescêncio, da Embrapa Amazônia Ocidental, informa que não há nenhum registro de caso da doença que tenha como origem os peixes de cultivo”.
O que é doença de Haff?
A doença de Haff é uma síndrome que consiste de rabdomiólise (lesão muscular), e se caracteriza por ocorrência súbita de extrema rigidez e dor muscular, dor na região do tórax, falta de ar, dormência e perda de força em todo o corpo e urina escura, associada a elevação da enzima creatinofosfoquinase (CPK), associada a ingestão de crustáceos e, principalmente, pescados.
A família do funcionário público Ademir Clavel foi contaminada no final de julho deste ano. Eles consumiram o peixe olho de boi, também conhecido como Arabaiana e, horas após do almoço, a esposa e o filho de Ademir começaram a sentir fraqueza, dor de cabeça e dor muscular. Vânia ficou cinco dias internada e o filho, Matheus, três dias.
O funcionário público não apresentou caso tão grave, ficou somente um dia internado. “Eu fui caminhar no Dique do Tororó e comecei a sentir um cansaço”. Já a esposa, Vânia, chegou a apresentar urina da cor de café e perdeu os movimentos após seus músculos ‘travarem’, conseguindo mexer apenas o pescoço. Mesmo após a alta hospitalar, Ademir conta que os efeitos colaterais na família permaneceram por algumas semanas, com os músculos ainda enfraquecidos, dor de cabeça e mal-estar.
A Nefrologista Ana Flávia Moura explica como a doença age no corpo. “A gente acredita que a doença seja causada por uma toxina encontrada nos pescados e essa substância destrói as células musculares. Quando essas células são destruídas, liberam no sangue uma série de substâncias, sendo algumas delas tóxicas. Então, se essas substâncias tóxicas ficam por muito tempo no organismo, se torna mais difícil evitar as sequelas”, acrescenta.
A nefrologista Carolina Neves afirma que a manifestação dos sintomas depende da quantidade de alimento ingerida. “Quanto maior a quantidade, maior a chance de manifestação de sintomas e mais graves eles podem ser. Tem paciente que não tem quase nada, apenas uma urina escura. Em outros casos, o paciente precisa ser internado. E vale lembrar que a urina escura não aparece em 100% dos casos e, quando aparece, não fica necessariamente preta. Se estiver avermelhada ou alaranjada, lembrando a cor de um tijolo, já é preocupante”. As informações são do Correio 24h.