Comecei a sair com um homem há três meses. Em meio a declarações românticas, flores, planos e apelidos fofos, houve uma sucessão de encontros desmarcados por ele. Dado meu incômodo com a situação, uma vez que me soava contraditório dizer que queria ficar comigo mas não ter tempo para isso, o questionei. Ouvi que ele não via motivo em se “sacrificar” para nos vermos, que eu estava sendo autoritária e que ele se sentia cobrado. Terminamo.
Contei minha história a uma amiga como um desabafo. “O que eu fiz de errado?”, me perguntava. E foi ela quem me sugeriu seguir a página do gaúcho João Luiz Marques, 26 anos, no Instagram. Estudante de Psicologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador na área de masculinidades, Marques faz posts falando sobre padrões de comportamento masculinos, como o desinteresse após a conquista, o discurso de se sentirem pressionados e o “ghosting”, termo em inglês para se referir a um sumiço repentino. Explica também por que a impressão de que nós, mulheres, sempre erramos, é mais um instrumento de controle do machismo.
Diferentemente dos coaches de relacionamento que tomaram as redes sociais, Marques não dá dicas de como fazer o homem voltar a se interessar por você, mas sim adapta as teorias às quais se debruça à vida prática, destrinchando o machismo enraizado nos padrões de comportamento e mostrando como eles se repetem. “Muitas mulheres me escrevem falando sobre alguma questão que abordo e dizendo que pensavam só acontecer com elas. E aí se dão conta de que tem até nome e descobrem as artimanhas dos caras.”
Com mais de 200 mil seguidores, diz escrever pensando em falar para os homens, mas 80% do seu público é feminino. “Não é meu objetivo, mas ao mesmo tempo é o esperado: as mulheres são criadas para se doar mais, a pensar mais sobre a relação. E, desde o início do relacionamento, têm algum prejuízo. Diria que uma relação é sempre desbalanceada porque elas dão 90%, e eles, 10%.”
UNIVERSA – Você se intitula como pesquisador das “masculinidades”. A que se refere esse termo?
JOÃO LUIZ MARQUES – A masculinidade é um conjunto de regras, deveres e padrões que se referem a certas performances vistas como masculinas. A ideia é de que, para ser homem, tem que performar esse personagem que decidimos socialmente que seria assim: um macho alfa, que não chora, que não cuida da saúde, que não é feminino, que é mais ligado na razão e menos na emoção, que é superior à mulher. Isso tudo é vendido como se fôssemos assim desde que nascemos. Mas é uma balela, é a tal da performance que aprendemos a desempenhar para sermos reconhecidos como homem ou mulher.
Fala-se em masculinidade tóxica, mas estamos abandonando esse termo para usar a palavra hegemônica, que é a que está aí para ser seguida por todos. Claro que há homens que fogem a essa regra, mas na maioria dos casos, essa cartilha é seguida.
Uma das coisas que já disse é que homens não são abertos para o amor. Por quê?
Falta uma abertura dos homens para o amor. Amar requer comprometimento, mas eles foram ensinados a fechar seus sentimentos. Quando o menino ouve que não pode chorar, que tem que ser homem, aí já ocorre o que chamo de ‘morte simbólica’ da pessoa, porque ela precisa se desconectar dos seus sentimentos.
Por estar nessa perspectiva, é muito difícil que esteja disponível para o amor. Além disso, ele aprende que sempre tem de estar conquistando, flertando. Muitas vezes, para um homem, o relacionamento é um entrave. É só ver essa piada de casamento como “game over”.
Como as mulheres saem prejudicadas de relacionamentos com homens?
As relações com homens são prejudiciais às mulheres desde o começo porque ela dá 90%, e ele, 10%. A parceira sempre vai dar mais porque foi criada para isso, em uma análise ampla. E foi ensinada a ficar quieta. Mas quando sente a desvalorização e reclama, ela é tachada de ruim, de horrível. Isso é triste e angustiante para a mulher que, no geral, por entender que é importante ter um parceiro, acaba cedendo muito mais do que ele.
Quais são os casos e dúvidas mais comuns que chegam até você?
As que costumam chegar mais são dinâmicas de começo de relação: história de cara que enrola, que está “cozinhando”, que sai com outra, que deixa ela como estepe. Também tem muito caso de ghosting, quando ele some porque não consegue falar que não quer mais. Sobre namoros já estabelecidos, vem muita reclamação sobre relação de migalhas, que é essa situação de a mulher se doar muito e receber pouco. E aí, quando o homem faz o mínimo, é visto como maravilhoso. Mas respeito, empatia, coerência, escuta não são coisas para se bater palma. É o básico. Há, porém, um número considerável de homens que não fazem o básico, então, para não ficarem sozinhas, as mulheres precisam baixar o padrão.
Eu tento mostrar o subtexto de situações cotidianas. Por exemplo, ao falar sobre o dia do futebol com os amigos. É como se estar com a parceira fosse um trabalho árduo, então precisa de um dia de folga. E aí se torna uma disputa em que ele vai exercer sua masculinidade, mostrando o poder, porque esse dia é sagrado.
Além disso, o ambiente do futebol é excelente para entender o afeto e a cumplicidade masculina, em que os homens gostam muito uns dos outros e deixam a mulher no lugar de algo utilitário, como um videogame.
Sempre que falamos de machismo, aparecem comentários do tipo “mas nem todo homem”. De fato, nem todo homem age da maneira como você coloca?
Sim, mas considero a minoria. Apesar dos homens que desviam do padrão, ainda estamos falando de uma estrutura que vê a relação como empecilho, que objetifica a mulher. É muito mais amplo do que um ou outro caso.
Tem muita gente nas redes sociais dando “dicas” para mulheres, a maioria delas no sentido de ensinar estratégias como ignorar, fazer jogo, usar táticas de conquista. O que acha desse conteúdo?
Acho diabolicamente genial porque pega uma fragilidade feminina e diz: “Eu tenho a solução”. Mas não tem nenhuma eficiência prática. Por mais que algumas mulheres aprendam a manipular um homem, a estrutura social vai continuar a mesma, não há um impacto mais amplo, um questionamento do machismo. Além disso, reforçam a ideia de que o objetivo da mulher é casar. Pode ser CEO de uma empresa, presidente da ONU, mas, se for solteira, tem algo de errado. E os homens, sabendo disso, se aproveitam dessa fragilidade também. A configuração de poder prevalece, ele sabe que ela vai perdoá-lo por algum deslize, que vai pensar duas vezes antes de terminar, justamente para não ficar sozinha. O que eu falo para os homens é que isso é uma forma de manipulação, é abuso.
Quando começou a escrever no Instagram, sua ideia era falar com homens. Eles estão abertos para essa conversa?
Eles não procuram por críticas à masculinidade nas redes sociais. Vão atrás de futebol, mulher seminua, carros. Mas tenho para mim que não vou passar a mão na cabeça, tratar como criança, para não se ofender. Já passou da hora de mudarmos isso. Hoje, meu público é 80% feminino e 20% masculino. Não é meu objetivo, mas ao mesmo tempo é o esperado: as mulheres são criadas para se doar mais, a pensar mais sobre a relação. O que vejo acontecer é que muitas delas mandam meu conteúdo para os parceiros, amigos, familiares. E recebo mensagens de homens dizendo que ao lerem o que esrevo, aprendem um pouco sobre si, dizem que se tornam melhores.
Por que é tão comum as mulheres se culparem pelo que acontece na relação, como se estivessem fazendo algo errado?
Muitas mulheres, independentemente da leitura a que têm acesso, se perguntam o que fiz de errado. Começam a rebaixar seus critérios, decidem “exigir menos”. Mas a questão é que isso nem exigência é. Pensam que será melhor parar de se impor, falar menos, mas quando veem, estão presas em uma relação infeliz tentando se encaixar na mediocridade dos parceiros.
Não dá para pensar que a mulher poderá estar livre do machismo, sempre há um jeito de oprimir. A origem está no desprezo masculino, na manutenção de seu poder. Não interessa se ganha mais ou menos, se tem bunda grande ou pequena.
Como a masculinidade hegemônica pode ser prejudicial para os homens?
Primeiro na questão da limitação emocional, de não conseguir expressar emoções, se conectar com o que está sentindo. Isso pode resultar em depressão, ansiedade. A saúde mental fica muito comprometida porque eles acham que não precisam cuidar disso, que não é coisa de homem. Também não há cuidado com a saúde física, acham que são super-homens. Isso tudo diminui a expectativa de vida deles porque não se cuidam. E se tiver algum problema, provavelmente a mulher vai cuidar dele. Mas quando acontece o contrário, de ela precisar de ajuda, costuma ser abandonada.
Depois de desenhar um cenário tão desequilibrado e beirando o trágico, você tem alguma esperança de mudança?
Minha esperança é conseguir trazer algum questionamento. Quero que o homem leia um texto e comece a pensar sobre si. Não vou conseguir mudar o mundo. Como vou, em 15 minutos, falar para um cara de 50 anos que tudo que ele aprendeu nesse tempo de vida está errado? Não dá para competir. Mas quanto mais pessoas discutirem, quanto mais chegar ao namorado, marido, pai e avô no almoço de domingo, conseguiremos mudar esse espectro. Os homens precisam entender também que não podem ficar só no discurso, só criticar o machismo. A ideia é fazê-los começar a agir. Redação da Universa.