Por Ronald Suny, no The Conversation*; Tradução Maurício Búrigo
Enquanto a guerra se alastra por toda a Ucrânia, duas versões da realidade subjacentes ao conflito encaram-se através de uma profunda divisão, nenhuma delas concedendo verdade alguma à outra.
O ponto de vista mais difundido e familiar no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, é o de que a Rússia é e sempre foi um estado expansionista, e seu atual presidente, Vladimir Putin, é a encarnação da ambição russa essencial: construir um novo império russo.
“Isso sempre… se tratou de agressão nua e crua, do desejo de Putin de império, custe o que custar,” disse o presidente Joe Biden em 24 de fevereiro de 2022.
Diretor da CIA de Biden, William Burns advertiu em 1995 para o efeito provocador à Rússia da expansão da OTAN. Então encarregado de assuntos políticos na embaixada em Moscou, relatou que “a hostilidade à expansão é sentida em todo o espectro político”
O ponto de vista oposto argumenta que as preocupações da Rússia com segurança são de fato legítimas, e que a expansão da OTAN rumo ao Leste é vista pelos russos como que dirigida contra o seu país. Putin tem sido claro, há muitos anos, de que, se continuasse, a expansão seria provavelmente confrontada com pesada resistência por parte dos russos, até mesmo com ação militar.
Essa perspectiva não é considerada pelos russos apenas; alguns influentes peritos em política externa norte-americanos a têm endossado também.
Entre outros, o diretor da CIA de Biden, William J. Burns, advertiu já em 1995 para o efeito provocador que teria sobre a Rússia a expansão da OTAN. Nesta época, Burns, então encarregado de assuntos políticos na Embaixada dos EUA em Moscou, relatou a Washington que “a hostilidade à expansão inicial da OTAN é quase que sentida de maneira geral em todo o espectro político aqui.”
De 12 países iniciais, a OTAN se expandiu pela Europa
A Organização do Tratado do Atlântico Norte é uma aliança militar que foi formada pelos EUA, Canadá e várias nações européias para conter a URSS e a difusão do comunismo. Agora, o ponto de vista no Ocidente é o de que ela não é mais uma aliança anti-Rússia e sim uma espécie de acordo coletivo de segurança que visa proteger seus membros de agressão externa e promover a mediação pacífica de conflitos no âmbito da aliança.
Reconhecendo a soberania de todos os Estados e seu direito de se aliar a qualquer Estado que desejem, com o tempo a OTAN aceitou os pedidos de democracias européias de ingressarem na aliança. Antigos membros do Pacto de Varsóvia, firmado pela União Soviética, e que era uma versão soviética da OTAN, foram também introduzidos na OTAN nos anos 1990, junto com três antigas repúblicas soviéticas –Estônia, Letônia e Lituânia–, em 2004.
O ponto de vista ocidental é de que o Kremlin deve compreender e aceitar que as atividades da aliança, entre as quais exercícios táticos, repletos de tanques norte-americanos, executados em estados bálticos vizinhos e foguetes posicionados na Polônia e Romênia –que os EUA dizem estarem apontados para o Irã– não apresentam de forma alguma uma ameaça à segurança russa.
Tanto a elite russa quanto a opinião pública em geral há muito se opõem a tal expansão, à colocação de foguetes norte-americanos na Polônia e Romênia e ao armamento da Ucrânia com arsenal do Ocidente.
Quando o governo do presidente Bill Clinton tomou providências para introduzir a Polônia, a Hungria e a República Tcheca na OTAN, Burns escreveu que a decisão era “prematura, na melhor das hipóteses, e desnecessariamente provocadora, na pior”.
Em 2008, Burns, então embaixador em Moscou, escreveu a Condoleezza Rice: “A entrada ucraniana na OTAN é o cúmulo dos cúmulos para a elite russa (não só para Putin). Ainda estou para encontrar alguém que não considere uma afronta aos interesses russos”
Ele continuou: “Enquanto os russos ferviam de indignação e sentiam-se em desvantagem, um acúmulo tempestuoso de teorias quanto a uma ‘punhalada nas costas’ se agitava devagar, deixando uma mancha nas relações da Rússia com o Ocidente que se prolongaria por décadas.”
Em junho de 1997, 50 proeminentes especialistas em política externa assinaram uma carta aberta a Clinton, que dizia: “Nós acreditamos que o esforço de expandir a OTAN conduzido pelos EUA é um erro político de proporções históricas” que iria “perturbar a estabilidade europeia.”
Em 2008, Burns, então embaixador norte-americano em Moscou, escreveu à Secretária de Estado Condoleezza Rice: “A entrada ucraniana na OTAN é o mais claro cúmulo dos cúmulos para a elite russa (não apenas para Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com atores-chave russos, desde brutamontes em recantos escuros do Kremlin até os mais afiados críticos liberais de Putin, eu ainda estou para encontrar alguém que considere a Ucrânia na OTAN como alguma coisa que não uma afronta direta aos interesses russos.”
Há diferentes conclusões a serem tiradas da crise atual, dependendo de como você considera a sua causa, quer como imperialismo russo, quer como expansionismo da OTAN.
Se você pensa que a guerra na Ucrânia é obra de um imperialista determinado, quaisquer ações, a não ser derrotar os russos, se assemelharão à uma pacificação tal qual a de Munique em 1938, e Joe Biden se tornará um ultrajado Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que cedeu às exigências de Hitler por território na Tchecoslováquia, apenas para descobrir que foi enganado, enquanto os nazistas marchavam tranquilamente para a guerra.
Se, no entanto, você acredita que a Rússia tem preocupações legítimas acerca da expansão da OTAN, então a porta estará aberta à discussão, negociação, conciliação e concessões.
Tendo passado décadas estudando história e política russas, acredito que, em política externa, Putin tem agido em geral como um realista, avaliando sem sentimentalismo ou moralismo a dinâmica do poder entre os Estados. Ele procura possíveis aliados prontos a levar em consideração os interesses da Rússia – recentemente encontrou tal aliado na China – e está disposto a recorrer às forças armadas quando acredita que a Rússia está ameaçada.
Mas algumas vezes ele também age com base em predileções ideológicas, as quais incluem suas histórias fabricadas sobre a Rússia. De vez em quando, age por impulso, como na tomada da Criméia em 2014, e com precipitação, como na desastrosa decisão de invadir a Ucrânia. Anexar a Criméia após a revolução pró-democrática de Maidan, em 2014, combinou tanto um imperativo estratégico de manter o controle da base naval do Mar Negro em Sebastopol, como uma justificativa nacionalista, depois do feito, de trazer o imaginado berço da cristandade russa e uma conquista histórica dos czares de volta aos braços da “pátria-mãe”.
O sentimento de Putin quanto à insegurança da Rússia diante de uma OTAN muito mais poderosa é genuíno, mas durante o atual impasse sobre a Ucrânia, suas declarações recentes se tornaram mais febris e até mesmo paranoicas. Em geral um racionalista, Putin parece ter perdido a paciência e está se deixando levar pelas emoções.
Putin sabe o bastante de História para reconhecer que a Rússia não se expandiu no século 20 –perdendo partes da Polônia, Ucrânia, Finlândia e Turquia oriental após a revolução de 1917–, exceto por um breve período antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando Stálin anexou as repúblicas bálticas e parte da Finlândia, e uniu terras da Polônia entreguerras à Ucrânia soviética.
Pergunta-se – como fez George F. Kennan, pai da doutrina de contenção da Guerra Fria, que advertia contra a expansão da OTAN em 1998 – se o avanço da OTAN rumo ao Oriente tem aumentado a segurança dos Estados europeus ou se os tem deixado mais vulneráveis
O próprio Putin ficou traumatizado com a desintegração da União Soviética em 1991, a perda de um terço do seu antigo território e metade da sua população. Num instante, a URSS desapareceu, e a Rússia se encontrou muito mais fraca e mais vulnerável às grandes potências rivais.
Muitos russos concordam com Putin e sentem rancor e humilhação, associados à ansiedade quanto ao futuro. Mas um número esmagador deles não quer a guerra, dizem os apuradores de pesquisas de opinião pública e analistas políticos russos.
Líderes como Putin quando se sentem encurralados e ignorados podem atacar de repente. Ele já ameaçara com “consequências militares e políticas” se as atualmente neutras Finlândia e Suécia tentarem ingressar na OTAN. Paradoxalmente, a OTAN pôs em perigo pequenos países na fronteira com a Rússia –como se deu conta a Geórgia em 2008– que aspiram ingressar na aliança.
Pergunta-se –como fez o diplomata norte-americano George F. Kennan, o pai da doutrina de contenção da Guerra Fria, que advertia contra a expansão da OTAN em 1998– se o avanço da OTAN rumo ao Oriente tem aumentado a segurança dos Estados europeus ou se os tem deixado mais vulneráveis.
*Ronald Suny é professor de História e Ciência Política, University of Michigan