Com um português marcado pelo sotaque estrangeiro, o suíço Lars Rellstab, 53 anos, lança um ditado tipicamente brasileiro para descrever seu atual vínculo com o Vale do Capão, área que bordeja o Parque Nacional da Chapada Diamantina: “Hoje eu não amarraria meu jegue por aqui”. O espanto não é apenas ouvir uma expressão tão específica dita por um gringo — ainda que seja um vivendo há quase 30 anos no Brasil—, mas porque a sentença possui uma ambiguidade curiosa.
Quando Rellstab chegou ao Capão, em 1993, o caminho de terra até a vila era feito, sobretudo, em cavalos e burros, ou mesmo a pé. Em julho deste ano, o governador Rui Costa (PT) autorizou uma ordem de serviço para asfaltar a estrada que liga o distrito de Caeté-Açu (onde fica o vale) até a sede, no município de Palmeiras, a 450 km de Salvador.
Serão R$ 29 milhões investidos em 17,9 km de extensão. O asfalto é um antigo pleito de parte dos moradores, diante de uma estrada de chão em péssimas condições, com buracos, desnivelamento e falta de manutenção. Antes mesmo de começar a pavimentação, no entanto, a obra é alvo de controvérsia.
“O problema não é o asfalto em si. A grande questão é que o Vale do Capão não é mais o mesmo”, lamenta o suíço, que se lembra da vila ainda pequena. “Hoje, quem vem de fora só quer festa e badalação. Isso gera especulação imobiliária e tira o encanto do lugar”, diz ele, que é produtor de mel.
Embalado pelo sonho hippie dos 1970 e a chegada dos primeiros alternativos, a comunidade manteve uma aura de misticismo e um estilo de vida conectado à natureza. Um estudo de sustentabilidade feito em 2014 apontava que 1.600 pessoas viviam na vila, espremida pelas serras do Candombá, a oeste, e da Larguinha, ao leste.
Com a popularização do espaço como área turística e a realização de inúmeros eventos culturais —entre eles, o Festival de Jazz, barrado em 2021 pelo governo Bolsonaro— a população mais do que dobrou. Hoje, estima-se que o Vale do Capão tenha 3.300 habitantes fixos.
“Antes, eu era contra o asfalto por acreditar que isso promoveria uma enorme mudança. Mas, se você olhar, essa mudança já aconteceu. Por aqui, transitam caminhões, carros grandes e motos todos os dias”, diz o agricultor de banana Carlos Formiga, 62, nativo do vale.
Já o astrólogo Jorge Seixas, 68, é categórico contra a pavimentação. “Como aqui é uma comunidade isolada da sede, problemas com lixo e crescimento desordenado estão aparecendo. Estamos abrindo demanda para atrair mais gente sem saber enfrentar nossos atuais problemas”.
Ele se autodefine como um remanescente da “cultura de Woodstock” e se mudou para a Chapada Diamantina no começo dos anos 2000. Na época, comprou um lote de terra de 1.000 m2, por R$ 3.000. Hoje, o terreno vale R$ 110 mil. “É uma especulação imobiliária violenta, com invasão até em áreas protegidas. Com o asfalto tudo isso vai ser potencializado”, afirma.
Além da espiritualidade mística, o Capão é também conhecido por reunir observadores de OVNIs (Objetos Voadores Não Identificados). Autor de livro e dono de um canal no YouTube sobre o tema, o ufólogo Paulo Gusmão, 60 anos, deixa de mirar as estrelas quando o assunto é o calçamento de terra.
“O asfalto é positivo para a vila. Precisam ter medidas que mantenham a organização do espaço, como pórticos que impeçam a entrada de carros na vila”, diz. Embora admita que a estrada, em medida futura, vá atrair mais iluminação e atrapalhar os pontos de observação dos objetos voadores, ele mantém o argumento. “Não podemos querer conter o progresso com atraso. Achar que é a estrada de terra, em más condições, vai preservar o Capão é um pensamento fraco”, diz.
Há cerca de um ano, quando o tema do asfalto começou a ganhar corpo, a Acomtuv (Associação dos Comerciantes do Vale do Capão) formou uma comissão para estudar formas de apresentar o projeto ao governo estadual. O modelo sugerido foi de uma estrada-parque, baseada nas ‘parkways’ americanas e já adotada em algumas rodovias brasileiras. Nele, há um planejamento para a preservação da flora e sugestão de passarelas suspensas para passagem dos animais.
“Quando a gente percebeu que esse modelo não seria adotado, sugerimos uma estrada mista, com parte asfalto e parte cascalho”, afirma Emmanuel Requião, 62 anos, integrante da comissão. O comerciante se disse “enganado” ao tomar conhecimento da ordem de serviço. “Tudo o que pensamos foi descartado. Parece que ouvir nossa comissão foi só para dizer que houve um diálogo com a comunidade”, reclama.
Procurado, o superintendente de Infraestrutura de Transporte da Bahia, Saulo Pontes, afirma que, dos 17,9 quilômetros previstos, dois serão de paralelepípedo. Segundo o técnico, as reservas de cascalho estão dentro do parque e não poderiam ser retiradas, impedindo um uso maior deste material na rodovia.
“As questões ambientais estão contempladas. A obra tem um custo mais elevado justamente por se preocupar com todos estes detalhes”, diz. O asfalto deve começar a ser colocado ainda este ano. A previsão inicial da obra é de nove meses de duração. Com informações do Folhapress.