Funcionários da RIT (Rede Internacional de Televisão), emissora a serviço do missionário R.R. Soares, dizem ter recebido orientações para favorecer o governo de Jair Bolsonaro (PL) na programação.
Afirmam ainda escutar que, se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhar o pleito, correm sério risco de ficar sem emprego. Seus superiores, segundo eles, usam a fake news de que o petista teria planos de fechar igrejas para justificar a possível demissão em massa. O canal é ligado à Igreja Internacional da Graça de Deus.
As denúncias chegaram ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e foram encaminhadas ao Ministério Público Eleitoral. A Folha conversou com dois profissionais do núcleo de jornalismo que confirmaram esse quadro. O jornal também procurou a RIT, para ouvir sua versão, mas não obteve resposta.
Um funcionário disse que existem orientações para dar roupagem positiva a notícias potencialmente danosas ao presidente, que tenta se reeleger com apoio de R.R. Soares e praticamente toda a liderança evangélica graúda do Brasil.
Por exemplo: os jornalistas não poderiam dizer que a gasolina aumentou pela décima vez seguida ou que a inflação está nas alturas. A informação teria que ser embalada para minimizar danos eleitorais, afirmam eles. Melhor falar que o preço da gasolina subiu após ficar três meses em estabilidade ou que a inflação desacelerou nos últimos dias, e a queda foi percebida no leite, no óleo e no arroz.
A procuradora regional do Trabalho Adriane Reis de Araújo, da Coordigualdade (Coordenadoria de Promoção da Igualdade no Trabalho), diz que a ameaça velada de desemprego caso um candidato ganhe configura assédio eleitoral.
Há uma relação assimétrica entre chefia e subordinados, o que fragiliza um dos lados, explica. Sugerir que o empregado pode perder sua fonte de renda se um candidato vencer é uma “ação que busca induzir, manipular e gerar uma desigualdade em que você dirige efetivamente o voto da pessoa”, afirma.
O jornal teve acesso a mensagens em que funcionários da RIT falam sobre as diretrizes para beneficiar o presidente, e nem sempre se mostram contentes com elas. Há um áudio em que a chefe de jornalismo reclama da insistência para evitar as notícias prejudiciais.
“Já falei pro pessoal, vamos falar que o coala morreu, que o coala deu mais um filhotinho no zoo, e esquecer que tem queimada na Amazônia, matando índio, tem que esquecer que Bolsonaro só fala merda. Então assim, é isso que é pra pôr? Então é isso que vai ter.”
Com sede em São Paulo, a RIT funciona como uma concessão pública concedida a partir de Dourados (MS). Em seu site, apresenta-se como uma emissora “totalmente baseada em valores cristãos”, que “sempre direcionou sua grade de programação para boas notícias através de seu núcleo jornalístico”. Segundo o mesmo texto, ela está disponível em 289 canais abertos pelo país, em operadoras de TV por assinatura e por streaming na internet.
No dia seguinte ao primeiro turno, um telejornal da casa deu mostras do viés bolsonarista adotado pelo canal. Destacou que a Bolsa subiu mais de 5% e o dólar desabou com o resultado, que colocou o presidente numa situação bem mais confortável do que a prevista. Disse ainda que o governo iria antecipar o pagamento do Auxílio Brasil e do vale-gás, medidas consideradas eleitoreiras, e ressaltou as discrepâncias entre pesquisas e a votação de Bolsonaro.
Um analista político disse que “esses institutos, quando erram, só erram de um lado”, ecoando a ofensiva bolsonarista para desacreditar os institutos de pesquisa. Esses ataques ignoram que um levantamento eleitoral nunca se predispõe a adiantar o desempenho dos candidatos, e sim registrar tendências de voto no dia em que é feito. Elas podem mudar de última hora, e ainda há fatores extras nessa equação, como a abstenção.
O telejornal é apresentado por Alexandre Giachetto, ex-Record e ex-SBT. Profissionais creditam os pedidos para manobrar o noticiário em prol de Bolsonaro a ele, ao editor-chefe Hélio Jacintho e a Edjail Kalled Adib Antonio, diretor-geral do canal integrado à igreja neopentencostal de R.R. Soares.
A reportagem enviou mensagem para os três e foi informada de que Kalled havia encaminhado o contato da repórter para a direção da emissora, que daria uma resposta. A reportagem, no entanto, não recebeu um retorno até a publicação do texto.
Acima do trio há a família do missionário, representada pelos filhos David Soares e Marcos Soares, eleitos deputados federais pelos diretórios de São Paulo e Rio do União Brasil.
Em 2021, David, que já é parlamentar, apresentou a emenda que concedeu anistia em tributos devidos por igrejas, uma dívida bilionária. Dados da Procuradoria-Geral da Fazenda mostravam na época que a Igreja da Graça devia cerca de R$ 160 milhões.
A equipe econômica do governo havia recomendado barrar o perdão tributário. Bolsonaro afirmou, na ocasião, que era obrigado a dar o veto presidencial à proposta, pois caso contrário poderia sofrer um impeachment por desrespeitar as leis de Diretrizes Orçamentárias e Responsabilidade Fiscal. Num aceno a aliados evangélicos, ele próprio, contudo, estimulou o Congresso a derrubar seu veto, o que acabou sendo feito.
A cobertura favorável da RIT à administração bolsonarista já era nítida durante o primeiro ano da pandemia. Mensagens mostram que Giachetto disse não querer ver João Doria, que governava São Paulo e tinha virado desafeto do presidente, “nem pintado a ouro” quando um editor lhe perguntou sobre a melhor forma para reportar uma reunião de Bolsonaro com líderes de Executivos estaduais do Sudeste.
A chefia teria desaconselhado reportagem sobre a construção de um hospital para infectados pela Covid-19 em São Paulo. Como justificativa, teria entendido que não seria um assunto de saúde pública, e sim marketing para a gestão Doria. Por outro lado, existiriam recomendações para emplacar matérias sobre cloroquina, remédio comprovadamente sem eficácia contra a doença, mas defendido por Bolsonaro, e pessoas curadas pela fé.
R.R. Soares é aliado de Bolsonaro e também já recepcionou, em culto, o ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos), que disputa o governo de São Paulo.
Em agosto, a Folha mostrou que a FIC (Fundação Internacional de Comunicação, braço midiático da igreja de R.R. Soares) é alvo de ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho, que traz acusações de violência psicológica, discriminação por idade, gênero, raça e orientação sexual, imposição de padrões de beleza a funcionárias e diversas outras infrações trabalhistas. Com informações do Folhapress.