O ministro Aroldo Cedraz tem atrasado o julgamento de um processo no TCU (Tribunal de Contas da União) que pode prejudicar o grupo empresarial que é atendido por seu filho, o advogado Tiago Cedraz. A avaliação no setor de energia é que o grau de parentesco levanta dúvidas sobre conflito de interesse, e que o ministro deveria ter se declarado impedido para participar do julgamento do caso.
O processo em questão foi aberto a partir de questionamentos do governo de Santa Catarina, que pede a anulação de um leilão emergencial de energia, batizado de PCS (Procedimento Competitivo Simplificado). O preço pago pela energia é muito acima da média e, pelas projeções, eleva a conta de luz em quase R$ 40 bilhões.
O certame validou 17 usinas em outubro do ano passado, com diferentes potências e valores a receber. Praticamente metade, quase R$ 18 bilhões, caberia a quatro projetos da Âmbar, empresa de energia controlada pela J&F, que também detém a JBS, maior produtora de carne do mundo.
Tiago Cedraz defende judicialmente a J&F, a holding que controla as empresas do grupo, em ao menos uma discussão, a disputa pela Eldorado Brasil Celulose.
Na corte de contas, a ação de Santa Catarina entrou em pauta pela primeira vez em agosto. Na ocasião, Aroldo pediu vista (mais tempo para analisar o caso) antes mesmo de o julgamento ser iniciado. Depois, a discussão do processo foi marcada em cinco datas, mas o ministro não estava presente no plenário em nenhuma delas, e a controvérsia não foi debatida.
Segundo a Folha apurou, o gabinete do ministro informa internamente que ele tem muito interesse em avaliar questões que tratam do direito do consumidor e ficou sem agenda para se dedicar ao caso como gostaria, pois pretende tratar a questão com o devido rigor.
Segundo a lei de conflito de interesse e o artigo 144 do Código Civil, que também trata do tema, um juiz, cargo análogo ao de ministro do TCU, não pode atuar em um processo no qual a parte interessada receba serviços de advocacia do próprio juiz, de seu cônjuge ou de parente em até terceiro grau. Filho é parente de primeiro grau.
Especialistas em direito administrativo, área que trata das relações entre gestores públicos e entes privados, ouvidos pela reportagem, avaliam que há conflito de interesse nesse caso, pois ainda que Eldorado e Âmbar sejam empresas de setores distintos, Tiago tem relação com a holding que atua pelos interesses de todas as empresas do grupo.
A reportagem procurou as assessorias do TCU e da J&F, e também Tiago Cedraz, mas não teve retorno até a publicação deste texto.
Como mostrou a Folha, advogados do escritório de Tiago já atuaram em ao menos 182 ações na corte de contas, inclusive na época em que Aroldo era presidente do tribunal.
O filho do ministro já foi investigado na Lava Jato em 2017 por suspeita de receber propina para intermediar a contratação de uma empresa americana pela Petrobras e alvo de busca e apreensão em uma operação que investigava suposto esquema ilegal de tráfico de influência junto a entidades do Sistema S do Rio de Janeiro.
Também respondeu a processo no próprio TCU depois de o dono da UTC Participações, Ricardo Pessoa, afirmar em delação premiada ter feito pagamentos mensais a Tiago para que ele repassasse informações do tribunal. O advogado teria recebido ainda R$ 1 milhão para atuar em um caso no TCU que, no final, beneficiou a UTC.
As investigações contra ele foram arquivadas.
Na ação apresentada ao tribunal, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, afirma que os preços médios fixados no PCS são cerca de oito vezes maiores que a média dos outros leilões.
“Essa distinção, por sua vez, tem o condão de gerar um impacto ao consumidor final que supera os R$ 40 bilhões, com impactos tarifários superiores a 4,5% a todos os consumidores do país”, diz o chefe do Executivo catarinense.
Relator do processo, o ministro Benjamin Zymler entende que as considerações do governo de Santa Catarina são pertinentes e que custos do leilão emergencial são prejudiciais ao consumidor de energia. Sua conclusão é que todos os contratos deveriam ser revistos pelo MME (Ministério de Minas e Energia).
Para os projetos que atrasaram, Zymler defende o previsto nas regras do leilão, o automático cancelamento dos contratos. Para quem entregou no prazo, sugere uma rescisão amigável.
O MME tem avaliação idêntica. O ministro Adolfo Sachsida já declarou publicamente que apoia sustar contratos dessas térmicas atrasadas. Em 28 de outubro, iniciou uma consulta pública para obter sugestões de como fazer uma rescisão amigável dos contratos com as empresas que entregaram os projetos do PCS dentro do prazo. Sachsida gostaria de resolver a questão antes de deixar o cargo.
É nesse ponto que o pedido de vistas do ministro do TCU causa desconforto.
As usinas do grupo J&F estão desde maio envolvidas num polêmico processo na Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). O grupo não entregou os empreendimentos no prazo previsto em contrato, e aguarda que o regulador reavalie seus argumentos pelo atraso dentro de um mecanismo conhecido como excludente de responsabilidade.
A empresa também solicitou uma mudança técnica que, na prática, flexibilizaria a entrega dos quatros projetos. Ambas decisões podem mudar o status dos projetos da J&F de atrasados para dentro do prazo.
Segundo especialistas ouvidos pela Folha, com a condição de não terem o nome revelado, o atraso no julgamento no TCU dá tempo para a empresa tentar reverter o risco de cancelamento dos contratos na agência e também para que seus advogados avaliam a melhor maneira de recorrer à Justiça, caso não consigam reverter a decisão na Aneel. Do Folhapress.