A Polícia Federal deflagrou nesta quarta-feira (15) uma operação contra uma quadrilha acusada de contrabandear ouro extraído de garimpos ilegais na região amazônica. Alvo da apuração, uma empresa sediada nos Estados Unidos seria a principal responsável pela exportação clandestina, segundo a PF. O nome da companhia não foi divulgado.
De acordo com o inquérito, o grupo usava notas frias para “esquentar” o minério explorado, ou seja, falsificar uma origem legal. Do início de 2020 até o final de 2022, as emissões desses documentos teriam sido superiores a R$ 4 bilhões, correspondendo a aproximadamente 13 toneladas de ouro ilícito.
São cumpridos três mandados de prisão e 27 de busca e apreensão em Belém, Santarém e Itaituba, todas no Pará, Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Goiânia (GO), Manaus (AM), São Paulo, Tatuí e Campinas, em São Paulo, além de Sinop (MT) e Boa Vista (RR). Também é cumprida autorização judicial para sequestro de mais de R$ 2 bilhões dos investigados.
Como funciona o esquema de ‘esquentar’ ouro de garimpo ilegal
O item primordial para registro do ouro garimpado é a apresentação da PLG (Permissão de Lavra Garimpeira), concedido pela ANM (Agência Nacional de Mineração). Uma boa parte das PLGs utilizadas no registro de ouro ilegal é emprestada. O clandestino usa a permissão de uma área legal, mancomunado com seu dono ou funcionário, quando precisa esquentar o ouro.
Também é possível, com certa facilidade, emitir o documento de uma lavra fantasma, como se diz, numa área onde não há ouro. Ou, ainda, conseguir registro para operar um local onde já se extraiu o minério, mas nada restou, com o argumento de que ainda há ouro. A ANM solicita laudos geológicos, mas não faz uma diligência ao local, em parte, por falta de estrutura. Há anos, profissionais da área de mineração alertam para o sucateamento da agência.
O elo chave da cadeia que esquenta o metal precioso é o primeiro comprador oficialmente registrado. A maioria do ouro que circula no país acaba virando ativo financeiro, e por uma razão simples: o tributo é mais baixo nessa categoria. Então, precisa ser vendido para uma instituição financeira autorizada a operar pelo BC (Banco Central). A maioria nesse segmento é DTVM (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários).
Nesse estabelecimento, o garimpeiro entra com uma PLG e sai com a nota fiscal. Um dos locais mais conhecidos com estrutura para legalizar o minério na Amazônia é a cidade de Itaituba, no Pará, onde se encontram filiais dessas instituições financeiras.
Nesse processo, a PLG costuma ser acompanhada de uma declaração de “boa-fé”, garantindo que aquele documento diz a verdade. Oficialmente, o expediente isenta a DTVM da responsabilidade de checar a veracidade. O uso da boa-fé num negócio propenso ao crime é criação recente de deputados e senadores. Foi instituído em 2013, graças a uma emenda inserida em um projeto de lei que tratava de seguro para safra agrícola.
Há uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) que tenta derrubar a boa-fé, e dois projetos de lei estão tramitando no Congresso com propostas para mudar a legislação, incluindo a criação de um sistema para rastrear o ouro. Mas tudo anda devagar.
Não há uma bancada do garimpo organizada no Congresso. No entanto, existem deputados e senadores ligados à atividade. Levantamento da Folha indicou que aos menos oito parlamentares que garantiram mandatos na eleição de 2022 têm ligações com extração mineral, incluindo garimpo.
Os órgãos reguladores da área financeira têm dificuldade até de interpelar instituições suspeitas. A boa-fé, por exemplo, limita a ação do BC, uma vez que a DTVM pode alegar não ser obrigada a exigir procedência do metal.
Pelo menos 30% do ouro comercializado no Brasil, de janeiro de 2021 a junho de 2022, têm indícios de procedência irregular, segundo um dos principais levantamentos sobre a legalidade do ouro no país. A metodologia do estudo foi desenvolvida numa parceria entre o Ministério Público e os pesquisadores Bruno Antônio Manzollli e Raoni Rajão, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Em janeiro, uma denúncia provocou a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) a abrir investigação sobre cinco DTVMs. O levantamento também aponta que os maiores gargalos estão na lavra de garimpo, em comparação à concessão, regime adotado para empresas de maior porte, cujas exigências para instalação e operação são muito mais rigorosas.
Em Minas Gerais, o maior e mais antigo estado produtor de ouro, prevalece a concessão para a exploração do ouro, e 92% dele é legal. No Pará, região de garimpo por excelência, 48% do ouro têm indícios de irregularidades. A nota fiscal, o documento definitivo da legalização, é outro item criticado pelos especialistas.
Uma instrução da Receita Federal de 2001, alterada em 2010, que trata do ouro como ativo financeiro, diz que a nota fiscal deve ser emitida por instituição financeira ou cooperativa de garimpeiro autorizadas pelo BC. Mas também determina que esse documento, em pleno século 21, deve ser obrigatoriamente emitido em papel.
Não houve, na norma, justificativa para a decisão, considerada mais estranha pelo fato de o ouro como mercadoria ter nota eletrônica. Há relatos de que na operação Dilema de Midas, em 2019, que apurou irregularidades em ouro extraído da bacia do Tapajós, a Polícia Federal precisou fazer uma força tarefa para digitar milhares de notas fiscais o mais rápido possível e viabilizar as investigações.
Se a nota fiscal fosse digital, seria mais ágil e eficiente fazer o cruzamento dos dados e conferir quanto ouro sai de cada lavra, e até o tipo de ouro, explica o delegado Alexandre Saraiva, que foi superintendente da Polícia Federal em Amazonas, Maranhão e Roraima por quase uma década.
‘Reciclagem de jóias’
Outra maneira de legalizar o ouro de garimpo é declarar que vem da reciclagem de joias. Em 2020 dois americanos quase conseguiram deixar o país com 35 kg do ouro, via Manaus, alegando ser produto de reciclagem. No aeroporto, no entanto, havia sido instalado há poucos dias um aparelho capaz de ler a composição do metal. A análise mostrou que a peça tinha 98% de impureza, denunciando que se tratava de ouro de garimpo.
“Com imagens de satélite, de alta resolução, por exemplo, já é possível ver se uma mina declarada está operando”, diz Saraiva. “Quanto maior a digitalização, melhor o combate à ilegalidade.” A maior parte do ouro brasileiro segue para a exportação e, ao que tudo indica, misturado ao de garimpo.
O estado que oscila entre segundo e terceiro lugar como maior exportador é São Paulo, onde estão as empresas capazes de fazer a etapa final de purificação para uso financeiro do metal. Nesse processo se misturam o ouro vindo de vários pontos do país, acabando de vez com a possibilidade de se registrar a origem do metal de garimpo.
O ouro da terra Yanomami pode ter feito esse périplo de legalização, via Pará, e deixado o país por São Paulo. Mas há também quem acredite que o grosso pode ter sido contrabandeado ao norte, pelas fronteiras de Suriname, Guiana e Venezuela, atendendo traficantes de drogas e de armas.
Naquela região, as investigações apontam conexões da lavra de garimpo com PCC, Comando Vermelho e Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A percepção é que o trabalho seria mais ágil e eficiente caso houvesse colaboração consistente e permanente de todos os organismos, que hoje atuam isoladamente. Não apenas força tarefa eventual.
“Crimes financeiros são complexos, multidisciplinares, envolvem diferentes competências de investigação, então, a estrada possível para coibir o comércio ilegal e a evasão de divisas relacionadas a extração ilícita do ouro seria a ação conjunta dos órgãos federais, incluindo PF, BC, CVM, Receita Federal, em cooperação internacional com autoridades que monitoram esse ouro em outros países”, diz Leandro Chiarottino, advogado especializado em contenciosos ligados a fraudes financeiras. Redação da Folhapress.