O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou contratos de cerca de R$ 650 milhões herdados de Jair Bolsonaro (PL) que levam para a atual gestão uma série de empreiteiras e condutas suspeitas de prática de cartel em obras de pavimentação.
As empresas contempladas agora e as práticas suspeitas nas concorrências são semelhantes às reveladas no ano passado em auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre a ação de um chamado “cartel do asfalto” a partir de licitações da estatal federal Codevasf.
O governo Lula assinou os contratos e manteve a direção da Codevasf nomeada por Bolsonaro, mesmo com essa e outras fiscalizações do TCU e da CGU (Controladoria-Geral da União) que apontam irregularidades em série, como superfaturamentos, desvios e obras precárias.
A Codevasf foi entregue por Bolsonaro ao centrão e mantida dessa forma por Lula em troca de apoio no Congresso.
A Folha analisou as 56 licitações de pavimentação da Codevasf de 2022, feitas principalmente em dezembro, na reta final de Bolsonaro. Desse total, 47 concorrências levaram à assinatura de contratos em 2023, já sob Lula.
A maior parte das concorrências teve a participação de pelo menos uma empreiteira apontada pelo TCU como suspeita de integrar o “cartel do asfalto”. Os contratos resultantes desse lote somam R$ 650 milhões.
Nesse grupo de licitações, a reportagem encontrou situações que indicam a entrada de empreiteiras apenas para fazer número ou simular competição em concorrências, além da repetição de um padrão de divisão de mercado em regionais da Codevasf verificado pelo TCU.
Uma das tendências é a de baixa competitividade nas licitações.
Em um setor em que há centenas de empresas em condições de disputar obras de pavimentação, as concorrências da Codevasf tiveram, em média, apenas seis participantes para esses novos contratos. A auditoria do TCU mostra que, antes do governo Bolsonaro, a média alcançava o triplo desse valor (18 concorrentes).
Outro indício destacado pelo TCU se refere à queda nos descontos oferecidos pelas empresas nas licitações. Nos pregões de 2022 analisados pela Folha, o desconto médio foi de 11%. Em 2018, o percentual era de 30%.
Um dos casos concretos que chama a atenção é o de uma disputa em Minas Gerais ganha por uma empreiteira do Rio Grande do Norte, que fica a cerca de 1.800 km da regional mineira da Codevasf.
Apesar de o setor de construção pesada ter mais de 200 empresas em Minas Gerais, apenas 4 construtoras entraram na concorrência para um contrato de cerca de R$ 29 milhões.
A licitação foi aberta pelo sistema de pregão eletrônico, pelo qual os lances e comunicações com os pregoeiros são feitos online.
Na abertura, a empreiteira potiguar CLPT fez uma oferta com desconto de apenas 1% em relação ao preço de referência da obra. Outras três construtoras deram lances melhores, com abatimentos de 9,1%, 9% e 5,5%.
Porém, ao serem sucessivamente convocadas para formalizarem suas propostas de acordo com os preços finais, e assim ganharem a disputa, nenhuma das três efetivou a vitória na prática.
Duas delas nem apresentaram a proposta. A outra solicitou a própria desclassificação, “em razão de não possuir atestados suficientes”. Isso abriu espaço para que a CLPT, que tinha dado o pior desconto, levasse o contrato.
Fatos como esse coincidem com situações de risco indicadas em guias de combate a cartéis elaborados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que serviram de base para a auditoria do TCU.
A primeira delas é o número de propostas substancialmente inferiores ao esperado, já que a licitação teve apenas quatro concorrentes e é grande o número de empresas aptas a fazer pavimentações em Minas Gerais.
Outra é a de que “uma empresa foi convocada como vencedora, seja porque apresentou o menor preço/maior desconto, mas não apresentou sua proposta”. No caso de Minas Gerais, essa circunstância atingiu duas das empreiteiras com melhores descontos.
Nessa licitação ainda houve situação que se assemelha a proposta fictícia, “caracterizada por apresentação de proposta por empresa que não tinha condições de atender aos critérios de habilitação”, já que uma empresa pediu a própria eliminação por não ter a documentação suficiente para ganhar o contrato.
A CLPT é a empresa que lidera o ranking de vitórias na Codevasf em 2022 no quesito valor, tendo levado contratos que somam R$ 144 milhões. Segundo a Receita Federal, o sócio-administrador da CLPT é Mario Lino de Mendonça Neto. Ele foi candidato a vice-prefeito da cidade de Upanema (RN) pelo MDB.
A campeã das licitações de 2021, a empreiteira maranhense Engefort, indicada na auditoria do TCU como a então líder do cartel do asfalto, levou contratos que somam R$ 47 milhões para execução na gestão Lula.
Uma das vitórias da Engefort, para um lote de pavimentações no estado do Tocantins, seguiu o mesmo roteiro da licitação de Minas Gerais ganha pela CLPT: desconto ínfimo de 0,01% e eliminação em série das supostas concorrentes.
Como os pregões foram feitos nos últimos dias do governo Bolsonaro, os acordos foram assinados nas primeiras semanas da gestão Lula.
A equipe de transição do governo Lula chegou a usar a Codevasf como mau exemplo de uso de recursos de emendas parlamentares. Parte do grupo avaliou que a estatal deveria se concentrar no desenvolvimento de regiões mais pobres em vez de escoar em pavimentações e maquinários a verba direcionada por congressistas.
Mudanças mais bruscas na Codevasf foram barradas com a decisão do governo de manter a estatal nas mãos do centrão. A ideia é que o engenheiro Marcelo Moreira, nomeado em 2019 com aval da União Brasil, siga na presidência da estatal, e que sejam alterados alguns nomes em superintendências e nas diretorias.
Especialistas ouvidos pela Folha disseram que a estatal poderia ter deixado de assinar os acordos com indícios de cartel.
“Ao longo do procedimento licitatório e até mesmo da execução contratual, a estatal não só pode como deve rever seus atos”, afirmou o professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano.
Para o advogado especialista em licitações Anderson Medeiros Bonfim, “o compromisso de contratação futura deve ser reanalisado pela estatal na medida em que incidem gravíssimos questionamentos”.
Segundo o ex-diretor da Faculdade de Direito da USP e constitucionalista Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, a estatal deveria ter aberto um procedimento para investigar as licitações e, se constatada a fraude, anular as concorrências.
Outra empresa apontada pelo TCU como integrante do cartel em 2021, a goiana Mobicon, aparece em terceiro lugar no ranking dos contratos formalizados nos primeiros dias da gestão Lula, com acordos que somam R$ 84 milhões.
Em um dos lotes vencidos pela construtora em Goiás, além dela, houve a participação apenas de outra empresa também apontada como integrante do cartel do asfalto, que só deu um lance inicial com desconto irrisório de 0,0001%. A Mobicon acabou levando o lote dando um abatimento de somente 0,5%.
Outro lado
A Codevasf afirmou que suas licitações seguem a lei e não fixam limites mínimos para número de participantes ou para descontos em relação aos valores de referência. Procurado, o Planalto não se manifestou sobre os contratos da Codevasf.
O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional afirmou que a Codevasf tem autonomia administrativa, “sendo responsável por suas obras e pela prestação de contas à sociedade”.
A construtora Engefort afirmou que “nunca combinou preços com empresas concorrentes e jamais atuou para fraudar qualquer licitação”.
A empreiteira Mobicon nega que tenha atuado em cartel e sustenta que participa das licitações dentro da legalidade. A CLPT foi procurada, mas não respondeu. Redação de Flávio Ferreira, Artur Rodrigues e Mateus Vargas da Folha de São Paulo.