Uma equipe do Jornal da Chapada esteve no município de Utinga, na Chapada Diamantina, para apurar denúncias de crimes ambientais feitas por nativos e ativistas que lutam em defesa da barragem do Rio Utinga, pela recuperação do manancial e de suas nascentes. Segundo as denúncias, o projeto em execução da empresa IPQ Engenharia, que ganhou o processo licitatório da Companhia de Engenharia Rural da Bahia (Cerb), do governo estadual, ao invés de realizar a desobstrução da barragem tem cometido crimes ambientais que podem matar o rio – o que tem preocupado ainda mais os defensores do meio ambiente. O muro de contenção, por exemplo, que será construído pela empresa e consta no projeto da Cerb, segundo os nativos, vai ser erguido em local errado. De acordo com eles, a contenção deveria ser no trecho onde desce enxurrada, que segue levando a terra da estrada que vem do Cajueiro e liga Cabeceira do Rio à Duas Barras, já no município de Morro do Chapéu.
Em conversa com Ariovaldo Souza dos Santos, o popular Lico, presidente do Comitê de Manutenção e Preservação do Rio Utinga (CooperRio) e membro do Partido dos Trabalhadores de Utinga, o Jornal da Chapada foi informado que as obras não estão sendo executadas adequadamente. “Nós lutamos para conseguir chamar a atenção das autoridades competentes no sentido de desobstruir a barragem. Essa luta foi travada em parceria com a comunidade da Cabeceira do Rio, Associação Cabeça do cacique Juvenal Payayá, além do apoio logístico dos produtores rurais, agricultores, entidades religiosas, sociedade civil organizada e poder público, por meio da Secretaria de Agricultura da administração do prefeito Joyuson Vieira”, salienta ativista.
“Ficamos felizes quando soubemos, no começo de dezembro do ano passado, que o estado, por meio da Cerb, contratou a empresa IPQ Engenharia para fazer esse trabalho de limpeza e desobstrução de toda a barragem, tirando taboas e entulhos. No entanto, o que estamos vendo na prática é uma maquiagem, por sinal, muito cara, pois o valor do projeto é de mais ou menos R$ 397 mil. Com muito menos fizemos um trabalho voluntário que levou a água do rio fluir até a BR 242 no auge dessa última ‘crise hídrica’, que foi de janeiro a março de 2017”, completa Lico.
Segundo o ativista, a operação voluntária que eles fizeram gastou cerca de R$ 150 mil, metade do valor do contrato da empresa e fez muito, pois desobstruiu os canais de escoamento da barragem, retirou taboas do lago, limpou a calha do rio e até repôs plantas nativas na área de preservação permanente. “O trabalho, não está sendo feito do jeito que a gente esperava pela IPQ. A gente está vendo um trabalho manual. Vemos homens trabalhando, mas o trator não é o adequado para fazer esse tipo de trabalho. Além de não fazer o trabalho bem feito a gente também vê danos ambientais na margem da barragem, onde estão grandes fontes de minadouros e vertedouros”, informa Lico ao Jornal da Chapada.
A equipe de reportagem tentou contato com a empresa IPQ Engenharia por meio do engenheiro civil José Fernando e do diretor Heitor Galvão, mas eles preferiram não dar declarações em um primeiro momento, mas explicaram, por exemplo, que o projeto é da Cerb e a empresa IPQ apenas executa. Na verdade, o que foi visto in loco realmente é preocupante, principalmente, para as nascentes do Rio Utinga e algumas ações são denunciadas pelos ativistas como crimes ambientais. Como por exemplo, abertura de acesso ao lago da barragem, aterramento de um trecho com terra estranha para acesso da caçamba que estava retirando o entulho e as taboas cortadas. Inclusive, no momento da reportagem, a equipe presenciou um flagrante quando um dos trabalhadores recrutados pela empresa atuava para desatolar a caçamba carregada às margens da barragem. Sem falar, que o trator que estava fazendo o trabalho de retirada do entulho era uma máquina de pequeno porte. O que foi defendido ela IPQ por ser mais leve e menos danoso para o trabalho no local.
Até o dia da visita da reportagem às obras, na manhã do dia 4 de janeiro, a empresa havia realizado uma pintura no paredão da barragem – que mostrava inclusive alguns furos em sua estrutura. Também havia recuperado um pequeno trecho de um dos canais, cercado de arame farpado o entorno do lago e construído uma base no pé da barragem e um caminho de acesso (veja as fotos com legendas). Para quem não sabe, o Rio Utinga nasce no povoado de Cabeceira do Rio, povoado do município de Utinga e é responsável pelo abastecimento humano, animal e irrigação de cinco outros municípios, sendo eles Utinga, Lajedinho, Wagner, Lençóis e Andaraí, sem falar que é um dos principais afluentes do Rio Paraguaçu – onde fica a barragem de Pedra do Cavalo, responsável pelo abastecimento de água para milhares de baianos.
“A gente sabe que o rio não é importante só para Utinga, mas para a Bahia. Esse é um rio perene que a gente espera que o governo dê uma atenção maior para essa nascente, tirando essa taboa, esse entulho. Não danificando a mata ciliar. Se a empresa vem e não faz um trabalho adequado, daqui a 15 dias está tudo entupido de novo. A gente quer que o trabalho seja o melhor, afinal é dinheiro do povo, são quase R$ 400 mil gastos pelo governo do estado”, dispara Lico, indignado com os crimes ambientais e com o descaso do poder público que gerou um projeto totalmente diferente do que foi acordado com as associações em diferentes reuniões, inclusive com participação da sociedade civil e poder público e privado.
Rio Utinga é solução
A equipe do Jornal da Chapada, a todo momento, foi interpelada pelos ativistas e nativos de Cabeceira do Rio com o discurso unânime de que o Rio Utinga é a solução para resolver parte da crise hídrica na região e na Bahia e ainda que sua recuperação pode ajudar a manter as pessoas em seus locais de origem, sem precisar fugir para os grandes centros urbanos atrás de emprego e renda. Para o nativo Ricardo Silva Moreira, que faz parte da comunidade ribeirinha, o trabalho da empresa não está sendo bem feito. “A gente sugeriu que fosse o mesmo serviço que fizemos três meses atrás, mas não está sendo da forma que a gente quer. Vamos destacar essa estrada que liga Cabeceira do Rio ao povoado de Duas Barras em Morro do Chapéu, essa estrada precisa ser desativada, ela passa em cima das nascentes que não podem ter uma carga pesada como essa. É preciso construir outra estrada fora das nascentes e desativar essa”.
Para o morador de Utinga, a forma como estão colocando o barro para acesso aos veículos pesados também está errado. “Podem matar o rio se fechar os minadouros, tem umas 20 minações e podem matar o rio com esse trabalho mal feito. Estão tentando corrigir crimes ambientais cometendo outros? A areia que está vindo de fora disseram que iam colocar na entrada para pegar materiais e que depois iriam retirar. Esperamos que retirem, se não vamos atrás de vocês, do jornal, do governador. Se hoje o rio está cuidado é por conta das mais de 60 ações voluntárias da comunidade. Nessa região, deve ter umas 30 casas. Fora da comunidade deve ter em torno de mil pessoas. Esses dois canais são históricos para a comunidade, 25 famílias sobrevivem deles. E a gente recebeu a culpa de ter secado o canal. E hoje se vê que somos a solução e não o problema. A gente queria um canal ampliado, mas não foi feito. Quando falaram recuperação pensamos em algo maior. Queríamos um canal de verdade, ampliado”, argumenta.
Ricardo Moreira também explica que as taboas estão sendo arrancadas superficialmente, sendo que elas têm de ser extirpadas. “Estudos revelam que a taboa consome de quatro a cinco litros de água por dia, se é assim, não precisa ser técnico para saber que a taboa vem matando o nosso rio”, completa o defensor, mostrando uma área onde se via o espelho d’água sem as taboas, que eles próprios fizeram a limpeza, e outra área onde a empresa só cortou as taboas na superfície, ficando as raízes submersas, podendo brotar novamente.
O cacique Juvenal Payayá também foi procurado pelo Jornal da Chapada e destacou que a comunidade começou a agir por conta própria para poder aliviar o sufoco do rio com as taboas. Conforme ele, tudo foi relatado e entregue ao governo. “Convidamos autoridades antes de qualquer ação. De repente, fomos surpreendidos com a informação que uma empresa tinha ganhado a licitação. Nesse planejamento, o grupo de Cabeceira do Rio e toda população que usa a água de Utinga e Wagner deveriam ter sido consultados numa reunião, para o governo saber de seus anseios para a barragem. Aí, penso, a empresa caiu de paraquedas e começou a fazer o que não devia”, aponta.
De acordo com o cacique Payayá, até as máquinas utilizadas nas obras de recuperação da barragem são inadequadas. “Acho que o engenheiro, por mais boa vontade que tenha, ele não teve tempo suficiente para fazer um planejamento de engenharia. E agora ele se vê numa jogada em que a empresa IPQ talvez queira jogar a culpa na Cerb. Penso assim: se você se entrega ao médico para fazer uma cirurgia e o médico não tem especialidade daquela função, qual o direito dele? Procurar a função antes de começar a fazer a cirurgia. A IPQ deve ser responsabilizada assim como, principalmente, a Cerb”, sintetiza Juvenal em entrevista ao Jornal da Chapada.
“Nós, que somos da região, sabemos as necessidades e o que queremos da barragem, nós que sentimos a dor. Aí colocam a tecnologia à frente do saber popular. E quando isso acontece, vemos desastres ambientais ecológicos irreparáveis. Não queremos que chegue a esse ponto”. Juvenal acredita que do jeito que a obra vai, “na primeira chuva que der o material vai voltar todo para a barragem. Como já aconteceu antes. Aí vai demorar mais 30 anos para saber o que aconteceu. Talvez encontre uma barragem seca, um rio seco e nosso trabalho perdido. O que mais queremos é a vida da barragem, do rio. Lutamos pelo bem maior que é a água para subsistência”.
Jornal da Chapada
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