“Em que era estamos? Em que lugar?”, pergunta-se o jornalista Roberto Pompeu de Toledo ao escrever sobre as fotos de Alexandre Augusto no prefácio do livro Stone Women, lançado pela editora Noir. O sol escaldante, os rostos cobertos por panos, as mãos empunhando marretas e as unhas delicadamente pintadas podem até evocar paisagens e situações de outros lugares ou eras remotas.
Mas não, trata-se de Brasil. Estamos na Bahia, no século 21. Em Stone Women, o fotógrafo Alexandre Augusto registrou o cotidiano das mulheres que ganham a vida quebrando pedras nas cidades baianas de Itaetê e Itatim, em meio as vistas deslumbrantes da Chapada Diamantina.
Mas engana-se quem pensa que o livro – lançado depois que uma exposição com as fotos fez sucesso em São Paulo e Salvador – é simplesmente uma denúncia contra a exploração dos sertanejos. Os retratos revelam a dignidade de mulheres que exercem o mesmo ofício há décadas. Mulheres que são “um exemplo de força e luta para todos nós. Um exemplo inspirador que precisa ser divulgado”.
O fotógrafo e autor Alexandre Augusto conversou por e-mail com a National Geographic. Confira a entrevista completa publicada no site da revista.
National Geographic – O que o motivou a produzir este trabalho?
Alexandre Augusto – Aconteceu por acaso, como muitas vezes na minha fotografia. Eu estava clicando aleatoriamente na Chapada Diamantina, próximo ao município de Milagres, na Bahia. É uma região em que você percorre centenas de quilômetros e não vê uma plantação, muito pouco gado e, às vezes, uma cabra, um bode. Estou falando de uma região que passa mais de ano sem chover e quando cai é uma chuvinha pouca. Eu ficava me perguntando o que as pessoas faziam para sobreviver por ali. Está pergunta me inquietava e era nisso que eu estava interessado.
Saí fotografando o cotidiano, a paisagem, os animais, as crianças. Até que encontrei minhas Mulheres de Pedra – trabalhando no Morro do Tigre, em Itatim. Não foi nada programado, eu simplesmente tropecei no tema. A história delas era mais forte do que todo o resto. Tinha de contar aquilo.
National Geographic – O que exatamente você queria ressaltar? Era algo específico ou você foi descobrindo enquanto fotografava?
Alexandre Augusto – O projeto inicialmente era totalmente diferente, mas quando vi aquelas mulheres não resisti. O tema simplesmente se impôs para mim. Não foi uma questão de gênero. Disso tenho a certeza. No primeiro dia fotografei homens, cachorros, montanhas, pedras. Só não fotografei mulheres. Elas se recusaram. Talvez por vaidade, não queriam ser retratadas vestidas daquele jeito. Ou timidez.
Na segunda viagem, insisti e consegui fazer a foto de um casal. Mas a ficha só caiu quando voltei para Salvador e ampliei as fotos. Percebi que aquele era o foco. A força estava naquelas mulheres. Tanto no trabalho de campo quanto na seleção do material para exposição acontece alguma coisa mágica. Você espalha as fotos na mesa e parece que elas vão se atraindo. “Essa fica boa ao lado dessa”… Parece mágica. Isso aconteceu também quando fiz a biografia de Moreira da Silva. Não creio em bruxas, mas…
National Geographic – Trabalhadores braçais são um tema bastante abordado pela fotografia. Algum ensaio ou fotógrafo em especial influenciou seu olhar para essas mulheres?
Alexandre Augusto – Não tem como deixar de citar o livro Trabalhadores: uma arqueologia da era industrial,de Sebastião Salgado. Um projeto sensacional que mostra atividades que estão desaparecendo desde a revolução industrial. Como todo livro de Salgado, deve ter demorado uns 7 anos para ser fotografado. É um trabalho arrebatador, grandioso e muito bem pensado. Ele registra atividades que estão em extinção.
Eu lembrei um pouco dessa temática a medida em que fui construindo o nosso projeto. No caso de Mulheres de Pedra tudo permanece como 100 anos atrás. Diego Rivera, por exemplo, tem uma pintura de 1945 chamada Stone Worker. Um homem quebrando pedra com as mesmas ferramentas que o pessoal ainda hoje usa na Chapada Diamantina. Ou seja, o quadro que ele pintou mais de 70 anos ainda acontece nessa região da Bahia.
National Geographic – Você dedica o livro a sua avó, também nascida na Chapada Diamantina, e no prefácio o jornalista Roberto Pompeu de Toledo diz que ela, na sua lembrança, rezava como uma das mulheres retratadas. Você enxerga outros pontos de conexão entre seus ancestrais e estas mulheres?
Alexandre Augusto – As mulheres têm importância extrema na minha vida. Além da minha avó, tenho o exemplo da minha mãe. Viúva que criou os cinco filhos sozinha. Ela foi mãe, pai, chefe de família. É mais uma mulher de pedra na minha vida
Como você notou, o projeto Mulheres de Pedra é todo dedicado à minha avó. A mulher mais forte que conheci. Sertaneja que morou numa colônia rural do Incra, na cidade de Santa Brígida, nos anos 60. Ela nasceu no município de Rui Barbosa muito próximo de onde fotografei e isso foi, na verdade, uma feliz coincidência. Um dia fotografava a casa de uma trabalhadora da pedra, quando ela fez o mesmo gesto que minha avó fazia ao rezar.
Lembro que fiquei nervoso, mas consegui capturar o momento. É um dos cliques que mais gosto. Roberto Pompeu de Toledo visitou a minha exposição em São Paulo e me ligou interessado no trabalho e especialmente naquela foto. Eu contei para ele da minha avó e pedi que escrevesse o prefácio do livro. Ele fez isso de uma forma supergenerosa e que muito me orgulha.
National Geographic – As mulheres parecem trabalhar sob condições ruins (sol forte e tempo seco) e ganham muito pouco. No entanto são orgulhosas do ofício. Esse dilema orientou seu trabalho de alguma forma?
Alexandre Augusto –É um trabalho duríssimo mesmo. Elas são verdadeiras formiguinhas. Geralmente trabalham em família: marido, mulher, tio, avô, avó, primos. Quinze pessoas de uma mesma família trabalhando numa pedreira. Chegam a fazer 500 paralelepípedos por dia. No final do mês, cada uma leva para casa cerca de 800 reais.
É um trabalho ininterrupto. Quando eu baixava a câmera para trocar uma lente ou o cartão de memória, elas continuavam a atividade. O principal cliente dessas pedreiras da região são as prefeituras. Postos de gasolina também compram muito para fazer o pavimento. Elas trabalham por conta própria. Não existe um patrão, não recebem salário. Vivem do que conseguem produzir.
National Geographic – Eu vi muito símbolos religiosos nas suas fotos. Foi algo que você procurou?
Alexandre Augusto –Na verdade, eu nem precisei procurar pela fé. Ela está em todos os cantinhos da Chapada Diamantina, nas casas, nas medalhas, nas palavras. Acho que não existe outra forma de se viver uma vida tão dura que não seja com fé. E eu quis trazer essa força para o livro por meio das fotos, obviamente, e das legendas também. Por exemplo: a legenda “Nossa Senhora das Horas” é quase que literal, pois do lado da trabalhadora fotografada está pendurado um relógio de parede com a imagem da Virgem Maria. Achei aquilo inusitado e muito forte e legenda obriga você a perceber, a não perder esse detalhe.
National Geographic – O tema do livro (trabalho), os lugares retratados (o sertão nordestino) e a simplicidade dos personagens poderiam ter seguido o caminho mais comum de uma reportagem-denúncia. Mas as fotos abordam a força e o orgulho dessas mulheres. Você concorda com essa afirmação?
Alexandre Augusto –Concordo, sim. Cheguei à pedreira questionando as condições de trabalho, mas fui rapidamente criticado por elas, que me disseram que o Ministério Público do Trabalho costumava fiscalizar a atividade.
Uma das mais velhas me deu logo um esporro: “Meu filho, eu dou graças a Deus pela pedra. É graças a pedra que fui criada e criei os meus filhos”. Essa conversa mudou minha cabeça e partir daquele momento decidi que queria retratar aquelas mulheres como um exemplo de dignidade. Um exemplo de força e luta para todos nós. Um exemplo inspirador que precisa ser divulgado.
National Geographic – Como jornalista, você teve dificuldade de mudar de uma linguagem mais objetiva e descritiva, no caso dos textos, para uma linguagem visual mais subjetiva?
Alexandre Augusto –Sou repórter e acho que a minha maior vocação nessa vida é contar histórias. Descobri nesse projeto que contar histórias é o que mais gosto de fazer. Eu já morei na África e fiz reportagens para a TV sobre a Guerra em Angola, já trabalhei em jornais impressos, em rádio e já publiquei uma biografia (do malandro carioca Moreira da Silva). Agora, eu parti para a fotografia. Podem parecer coisas bem diferentes, mas se você olhar mais a fundo vai perceber que são formas distintas de contar histórias. É só saber ajustar o foco (risos).
National Geographic – E como é o seu processo criativo? Há um planejamento?
Alexandre Augusto –A verdade é que, em 99% dos casos, você planeja uma coisa e o que dá certo é o que não foi planejado. É aquele clique que você faz cansado, depois de uma caminhada de três horas, com uma luz ruim. É justamente aquele o clique matador. Você planeja uma cena na sua cabeça, faz mil fotos dela e quando vai checar está faltando alguma coisa. Faltou o momento decisivo. Às vezes, você faz um clique apenas para checar o foco ou o preset da máquina e é esse clique que vai para a exposição.
Eu fotografo em Raw (o arquivo cru com a maior quantidade de informação) para ter a possibilidade depois manipular na pós-produção. Mas confesso que a fotos feitas em Itaetê, por exemplo, não precisaram de nada. A luz da beira do Paraguaçu é realmente mágica a qualquer hora do dia. É esse tipo de foto que procuro. Todas as pessoas fotografadas autorizaram e assinaram um termo de permissão. Não faço candid photography, mas tenho consciência de que as melhores fotos são quando a pessoa relaxa e esquece que você está ali. Mas muitas vezes conseguimos também resultados maravilhosos da pessoa olhando para a câmera. Não existe fórmula mágica.
National Geographic – Porque a opção pela cor e não pelo Preto & Branco?
Alexandre Augusto –Comecei a fotografar em P&B quando ainda se usava filme. Aprendi a revelar em preto em branco com o professor Oldemar Vitor na Faculdade de Comunicação da UFBA. Cheguei a ser monitor dele na Facom. Naquela época, os jornais só publicavam fotos coloridas basicamente nas primeiras páginas e capas de cadernos. As internas eram todas em P&B. Deduzo que por uma questão de custo.
Adoro o preto e branco de Pierre Verger. Adoro aquele preto absoluto e a nitidez das fotos de Verger. Se você compara a qualidade técnica das fotos de Verger da primeira metade do século 20 com as fotos de Cartier-Bresson… Verger dá um pau. Essa é a minha opinião. Nas últimas décadas, porém, o P&B acabou virando uma zona de conforto para a falta de técnica. O cara não sabe fotografar e acha que em P&B é mais fácil.
Não é bem assim. O P&B também virou em Fineart meio que um sinônimo de elegância. Mas para mim foto boa é foto boa. Colorida ou não. Tenho na minha sala uma imensa foto de Steve McCurry. Adoro o azul daquela foto (Pescadores do Siri Lanka, 1993). Não estou disposto a abrir mão das cores lindas do Sertão Baiano. Penso colorido, fotografo em cores. Um dia aprendo a clicar em P&B. Ainda não estou preparado para isso.
National Geographic – Qual o seu objetivo ao publicar o livro?
Alexandre Augusto –Em 2016, eu fiz duas exposições gigantes sobre as Mulheres de Pedra. Uma em Salvador e outra em São Paulo. Foi um enorme sucesso e tivemos convites de levar a exposição para todo o Brasil e até exterior. Surgiu então a ideia do livro. Essa foi a forma que encontrei para eternizar e atingir mais pessoas contando história destas Mulheres de Pedra. A entrevista foi retirada na íntegra do site da National Geographic.