Em passos rápidos e marcados, o jovem com aparência de menino se aproxima. O sotaque denuncia que a Bahia não é o único estado que faz parte de sua vida e logo ele se define “carioca da gema”. Diego Vidal, de 21 anos, diz que não tem sonhos, não pensa em ter família e sequer tem perspectiva de melhorar a situação em que vive: nas ruas de Salvador. Ao contar sua história entre o Rio de Janeiro e a Bahia, o rosto de Diego, que sorria no início da entrevista, ganha a feição de amargura para declarar a decisão: “não quero família porque não quero que aconteça de novo tudo o que aconteceu comigo.”
De acordo com o projeto Axé, do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), mais de 14 mil pessoas vivem nas ruas de Salvador, expostas a todo tipo de violência e sem a garantia de direitos básicos. Se somadas às que tiram seu sustento das ruas, como lavadores de carro, prostitutas e flanelinhas, o número chega a 20 mil pessoas. “Nunca conheci meu pai biológico, vim com minha mãe e meus irmãos para a Bahia, onde ela conheceu meu padrasto. Ele morreu após ataques covardes de facão, num sítio. Ela teve uma doença na cabeça e morreu no hospital depois de mais de um ano internada. Mesmo ela ainda lutando pela vida, não suportei a dor e vim parar na rua”, narrou o jovem que há dois anos não tem residência fixa.
A pouca leitura de Diego foi adquirida até a 4ª série, mas não permite que ele arrume um emprego que lhe garanta uma renda melhor. Apesar disso, Diego conta, orgulhoso, que se mantém com a ajuda de terceiros e com a oportunidade que ganhou, na Feira de São Joaquim, onde trabalha como “passador de tomate”. “É difícil pra comer e dormir. É raro pedir água e alguém dar. Hoje me mantenho com o que ganho na feira. Cada caixa de tomate que separo é R$ 1 que eu ganho. Separo o verde do maduro e descarto os podres. Geralmente, se eu passo 100 caixas, ganho R$ 100, é cansativo, mas é o que posso para comprar uma pasta de dente, uma escova, um sabonete. É com esse trabalho que eu mato o vício que eu mesmo criei em mim,” conta o rapaz que se queixa do abandono de quem vive nas ruas e diz estar lutando contra o vício do crack.
Dados
A Bahia não possui um número oficial de quantas pessoas vivem nas ruas e os levantamentos ficam por conta de grupos e projetos que pesquisam por conta própria. A ausência de um banco de dados – que trate diretamente sobre quem são essas pessoas, o que as levou às ruas, qual o perfil social, faixa etária, cor e escolaridade, por exemplo – dificulta no desenvolvimento de políticas públicas eficazes para quem vive em vulnerabilidade social.
Um dos coordenadores do Projeto Axé Marcos Cândido acredita que enquanto não houver conhecimento e dados confiáveis sobre quem são e o que querem essas pessoas, as políticas públicas serão falhas. “Eles são números, mas não há dados qualitativos que produzam conhecimento sobre quem são essas pessoas. As instituições se organizam para dar conta do que elas imaginam que a população de rua precisa. Sabe aquele ditado que diz: pra quem é pobre, qualquer coisa serve? E sabemos que não é por aí. Eles são sujeitos de conhecimento, de direitos e de desejos”, argumenta Marcos Cândido.
No estado, o órgão responsável pelo suporte às pessoas em situação de rua é a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), que mantém uma superintendência que atende, em média, 13 mil pessoas em todo o estado. Na capital, Salvador, a Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) é responsável pelo atendimento a moradores de rua e disponibiliza 600 vagas entre as 12 unidades de acolhimento que existem na cidade, que equivale a 5% de toda população de rua da capital. Cada acolhimento dura entre três e seis meses e, além disso, há o programa de Auxílio Moradia, no valor de R$ 300, que atualmente é conhecido a 672 pessoas em situação de rua.
Violência
Para a promotora de Justiça, Márcia Teixeira, do Centro de Apoio de Direitos Humanos do Ministério Público da Bahia (MPE), falta um plano municipal ou estadual amplo para atender pessoas na mesma situação de Diego. “As residências inclusivas [casa de acolhimento para pessoas sem vínculos familiares ou com vínculos muito fragilizados] que existem em Salvador não dão conta da população de rua que a gente tem. Recentemente, o estado do Paraná disponibilizou uma verba de R$ 5 milhões para atender a população de rua. Enquanto isso, os governos estadual e municipal, na Bahia, não têm um plano específico para a população de rua. A gente vai instalando equipamentos que dão conta de uma parte dessa população, mas não dão conta da integralidade do problema”, diz a promotora.
A promotora demonstra preocupação com a violência a que está exposto quem mora nas ruas. “A gente tem a violência sexual contra crianças e mulheres, há a exposição às drogas lícitas e ilícitas, porque muitas dessas pessoas usam drogas para conseguir sobreviver nas ruas, porque talvez nem usavam antes. Isso remete a um ciclo de busca por proteção. Já ouvimos depoimentos de que uns têm de dormir e os outros ficam tomando conta e quem não tem esses companheiros de rua, têm de dormir durante o dia para não serem mortos”, diz Márcia Teixeira. Diego Vidal, que contou sua história no início da reportagem, se emociona ao falar sobre as dificuldades que enfrenta diariamente e não se conforma com a capacidade de as pessoas ignorarem quem mora na rua “simplesmente por não terem onde morar e nem vida digna.”
“Muita gente passa e nos chama de ladrão, vagabundo, drogado. Está correto, muitos de nós somos usuários [de drogas], mas as pessoas precisam entender que nem todo mundo é errado, a gente faz o nosso corre e muitos de nós aqui tem salvação. Tratam a gente pior que um cachorro, tem gente que tem medo da gente, como se a gente fosse bicho. Só digo uma coisa a essas pessoas: não precisam ter medo da gente, somos seres humanos iguais a todo mundo. Estamos nessa vida porque perdemos tudo e não estamos aqui porque queremos”, desabafa Diego.
Racismo
A história de Diego tem pontos em comum com a da maioria das pessoas que vivem nas ruas de Salvador. A cor da pele revela a realidade da exclusão social vivida, principalmente, pelas pessoas negras. A socióloga Jamile Barbosa coordena o Programa Corra Pro Abraço, da SJDHDS, que presta assistência a pessoas com dependência química. Ela atribui a situação à guerra contra as drogas e à falta de oportunidades nas periferias, realidade que se sustenta com o racismo.
“Há o racismo dentro disso, obviamente, porque não é qualquer jovem que está nas ruas, são prioritariamente os jovens negros. Quem participa das atividades vêm de audiências de custódia, são de periferias, negros e que têm se envolvido nos bairros com a questão do tráfico, por falta de oportunidade, geralmente pararam de estudar cedo e ninguém percebeu, ninguém viu. Tudo está relacionado a um movimento de exclusão que vem dos bairros e deságua nas ruas do centro”, observa Jamile.
Com reuniões duas vezes por semana, à noite, em praças de Salvador, o programa é uma iniciativa do governo baiano para atender moradores de rua que têm algum tipo de dependência química. Além das atividades culturais, o projeto funciona como ferramenta de acesso para outros serviços como centros de recuperação, postos de saúde e albergues. Em todos os casos, a demanda parte dos atendidos. Da Agência Brasil.