Renata Bragança, professora do ensino fundamental, recebeu recentemente, no WhatsApp, uma nova denúncia comprovadamente falsa. Segundo a mensagem, a “cartilha gay” estava lá, em uma escolinha no município de Ipatinga, no interior de Minas Gerais. No texto, outra professora afirmava que o material seria distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) a escolas de todo o país – um “alerta para proteger nossas crianças”, ao menos segundo a mensagem. A professora, que recebe mensagens falsas com frequência, respondeu que pagaria R$ 100 pelo kit: “Não tinha, claro. Esse material nunca nem chegou às escolas”, comenta.
Renata enviou à reportagem da Pública uma série de correntes e conteúdos compartilhados em grupos de família, de amigos e da igreja evangélica que frequenta que alertam sobre a distribuição do “kit gay” nas escolas ou de outras “tentativas de doutrinação de gênero” no ensino. Todos os conteúdos estão associados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e impulsionam a campanha política de Jair Bolsonaro (PSL), que vem reiteradamente se referindo ao kit nas suas próprias redes. Conteúdos postados pelo próprio Bolsonaro e seu filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro, foram alvo de decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Na segunda-feira, 15 de outubro, o ministro Carlos Horbach determinou a retirada de seis vídeos que afirmaram que o livro Aparelho sexual e cia foi adotado durante a gestão de Haddad no MEC. Em agosto, Bolsonaro apresentou o livro no Jornal Nacional, da Rede Globo, e afirmou que o material foi distribuído para crianças pelo MEC na gestão de Fernando Haddad. “Além do ‘kit gay’, recebo mensagens dizendo que as meninas vão ser obrigadas a beijar outras meninas, que o Haddad vai fechar as igrejas, que vai obrigar as escolas a ensinar que todos são gays. Uma, duas, três, de várias pessoas diferentes”, relata a professora.
Na experiência de Renata, mensagens sobre o “kit gay” são difíceis de contestar, mesmo ela sendo professora e afirmando aos que enviam as mensagens falsas de que essa realidade está longe de ser a da sala de aula. “Todo mundo quer proteger uma criança, criança é sagrada na sociedade. Mas eles se aproveitam de uma brecha que foi descobrir que os pais não vão na escola, no máximo deixam os filhos e buscam, mas eles não sabem o que acontece lá. Qualquer mentira é difícil de desmentir”, reclama.
Disparada nas pesquisas
A pedido da Pública, o Monitor do Debate Político no Meio Digital listou as dez publicações mais compartilhadas que mencionam o “kit gay” no Facebook de 15 de setembro a 15 de outubro. O monitor é um projeto do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP). No topo das publicações mais compartilhadas está o perfil oficial do candidato Jair Bolsonaro, que reiteradamente se refere a Haddad como o “pai do kit gay”. A publicação no Facebook, no dia 10 de outubro, que teve mais de 115 mil compartilhamentos faz ataques a Haddad e reafirma que o petista é o criador do “kit”.
A segunda publicação com mais compartilhamentos foi feita pelo deputado federal pelo PT, Enio Verri. Neste caso, a postagem questiona as afirmações de Bolsonaro sobre o “kit” e traz uma entrevista de Haddad sobre o boato. A postagem teve 35 mil compartilhamentos. A terceira, quarta e quinta publicações com mais compartilhamentos são todas favoráveis à versão de Bolsonaro, feitas por páginas como Brasil com Bolsonaro, Somos Todos Bolsonaro e Movimento Brasil Livre (MBL). Juntas, elas somam 77 mil compartilhamentos.
O Monitor rastreou também conteúdos antigos que voltaram a ser compartilhados no período eleitoral. No topo deles, está uma postagem do site evangélico Gospel Prime, que afirma que o “kit gay” seria reformulado e lançado até o fim do ano de 2011. A postagem faz referência a uma matéria da revista Veja na qual Haddad afirmava que o material anti-homofobia seria revisado, sem custos adicionais, após a pressão de grupos religiosos. A postagem do Gospel Prime alcançou 140 mil compartilhamentos. Além desse conteúdo, uma reportagem da revista Nova Escola, que esclarece do que se tratava o material “escola sem homofobia”, também voltou a circular no Facebook. O conteúdo de 2015 alcançou 22 mil compartilhamentos.
“As páginas que estão fazendo campanha para Bolsonaro claramente estão apelando para exageros como ‘protejam suas crianças!’, sugerindo que o material seria nocivo aos jovens. Do outro lado, a campanha de Haddad faz um grande esforço para desmentir o caso, mas com o ônus de ter de esclarecer as nuances do projeto original”, comenta o professor da USP e coordenador do Monitor, Márcio Moretto. Para o pesquisador, como, de fato, houve uma tentativa do PT de produzir material de conscientização sobre a homofobia, foi criada uma zona cinzenta fértil para todo tipo de abusos. As informações são de El País.