O Ministério Público Federal (MPF) recomendou à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) a anulação imediata da Instrução Normativa 9, publicada na edição de 22 de abril do Diário Oficial da União (DOU) que permite, de forma ilegal e inconstitucional, o repasse de títulos de terra a particulares dentro de áreas indígenas protegidas pela legislação brasileira. A recomendação também foi encaminhada à presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e à Direção-Geral do Serviço Florestal Brasileiro para que se abstenham de cumprir a instrução normativa da Funai, por inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade.
Para 49 procuradores de 23 estados da federação, a instrução normativa emitida pela Funai “contraria a natureza do direito dos indígenas às suas terras como direito originário e da demarcação como ato declaratório”, fundamento inscrito na Constituição brasileira, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e reconhecido por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e das Cortes internacionais.
Ao criar “indevida precedência da propriedade privada sobre as terras indígenas”, diz a recomendação do MPF, a portaria da Funai viola o artigo 231 da Constituição, que se aplica também aos territórios indígenas não demarcados, já que, ao Estado Brasileiro cabe apenas reconhecer os direitos territoriais indígenas, que são anteriores à própria Constituição. A instrução normativa 9, da Funai, ao permitir que sejam declaradas como particulares as terras indígenas, cria, na verdade, uma situação de insegurança jurídica que aumenta “gravemente os riscos de conflitos fundiários e danos socioambientais”.
A previsão de repassar a particulares terras que são consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro como indígenas, além de ilegal e inconstitucional, dizem os procuradores da República, pode caracterizar improbidade administrativa dos gestores responsáveis por emitir a instrução normativa 9, o que os tornaria incursos nas sanções previstas na lei de improbidade administrativa, como a cassação de direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público, e multas. O STF, em vários julgamentos, já afirmou a chamada “originalidade do direito dos índios às terras que ocupam”, ou seja, que não cabe a nenhum governo afirmar quais terras pertencem ou não aos povos indígenas, mas apenas declarar essa condição de acordo com estudos antropológicos e técnicos.
“Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não índios”, diz, por exemplo, a decisão do STF no Caso Raposa Serra do Sol.
Pelo ordenamento jurídico e pela jurisprudência dos tribunais, portanto, “o processo demarcatório não é pré-requisito para o estabelecimento de direitos territoriais, tendo em vista o reconhecimento feito pela Constituição de uma realidade indicada pela singular relação dos povos indígenas com os seus territórios, de modo que o procedimento, de caráter administrativo, permite, em verdade, estabilizar os direitos territoriais indígenas perante os não indígenas e formalizá-lo em caráter definitivo”, adverte o MPF.
O caráter originário do direito indígena aos territórios, conferido pela Constituição e por diplomas legais internacionais que se aplicam ao direito brasileiro internamente assegura a precedência desses direitos sobre a propriedade privada, mesmo quando os processos de demarcação ainda não se concluíram. O fato de que as terras indígenas têm como titular a União, ou seja, o patrimônio da sociedade brasileira, demonstra que estão duplamente protegidas, com proteção formal para viabilizar plenamente os direitos territoriais e também para assegurar o uso exclusivo pelos indígenas desses territórios.
Para o MPF, o papel da União e da Funai, em cumprimento da legislação, é essencialmente “defender a territorialidade indígena, em favor dos anseios dos povos indígenas e contra terceiros, inclusive antes da demarcação”. No caso da Funai, esse é o próprio papel institucional que rege o seu funcionamento, de acordo com a lei que criou a autarquia (Lei 5.371, de 5 de dezembro de 1967).
A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) chegou a recorrer contra a decisão do CNJ, mas teve o pedido negado. A normativa da Funai cria riscos de inviabilidade também para o financiamento das atividades agropecuárias, visto que as autoridades financeiras, como o Conselho Monetário Nacional, estabeleceram princípios e diretrizes de natureza socioambiental nos negócios, o que inclui o respeito aos direitos territoriais indígenas.
A abertura de terras indígenas para a grilagem, configurada na Instrução 9, de 16 de abril de 2020, da Funai, pode significar danos socioambientais irreversíveis, uma vez que os povos indígenas são responsáveis pela manutenção da maior parte da riqueza dos biomas brasileiros, tema já discutido pelo STF, que vedou o chamado retrocesso em matéria ambiental, quando uma normativa permite a redução da proteção do meio ambiente. As informações são da assessoria.