Não houve alguma vez em que a negatividade tenha pairado a cabeça de Pedro Gabriel dos Santos Jesus, o ‘Pepê’, 20 anos, e o caboclo Tupinambá não aparecesse. Na época, sendo ainda uma criança, ele já emprestava o corpo para o encantando. “Era eu colocar coisa negativa na cabeça e o caboclo vinha”. Do Orum, o mundo espiritual na língua ioruba, o caminho dele começou a ser traçado.
Ao olhar para o passado, ‘Pepê’ lembra das vezes em que não podia brincar, mas ele não sente tristeza, e sim orgulho. Ele foi escolhido e é o curandeiro mais jovem do jarê, em Lençóis, na Chapada Diamantina. “Eu não queria, via meus amigos brincando e não podia, porque eu tinha obrigações a fazer”.
O corpo de ‘Pepê’ ainda era o de um recém-nascido na primeira vez em que um encantado desceu na sua cabeça e ele ficou tão fraco que a mãe e a avó temeram o pior. A agonia pasou, mas nunca definitivamente. Só sete anos depois, ‘Pepê’ diz ter conhecido a tranquilidade, em uma cerimônia do jarê. “Tive que me iniciar e aí começaram minhas obrigações mesmo”.
Nem a pouca idade impede que ‘Pepê’ seja um líder, posição que ocupa desde a infância. Em 2014, foi sagrado Pai de Santo e curandeiro e abriu, amparado pela família, o Castelo de Ogum, o único terreiro na zona urbana de Lençóis, maior berço do jarê. Tinha apenas 14 anos. “A religião me tornou mais sério, um líder desde cedo, uma pessoa muito responsável”.
Terreiro dentro de casa e uma vida no jarê
A avó paterna de ‘Pepê’ também deveria ter sido curandeira, segundo ele. Mas, ela não aceitou, “não aprofundou na religião, não quis”. ‘Pepê’ lamenta o fato de que “a avó pagou o preço”. A visão, antes boa, turvou. Até que chegou o dia em que ela não enxergava mais um palmo à frente do rosto. Tinha ficado cega. A história, e as experiências pelas quais passou, ensinaram ‘Pepê’ a levar as obrigações religiosas a sério.
Quando não está dedicado ao jarê é porque está no trabalho, como supervisor na Prefeitura de Lençóis. ‘Pepê’ não terminou os estudos, mas acredita não precisar dos livros para cumprir seu desígnio. “Se vocês pudessem vir aqui, veriam que não preciso de livros”. Sua rotina de serviço consiste em deslocar carros que atrapalhem a paisagem da cidade e multar aqueles estacionados irregularmente. Logo, quem o vê das 8h às 15h, não imagina que ele é o respeitado ‘Pai Pepê’.
Sempre que tem tempo, ele vai à roça se dedicar ao arado da terra e ao plantio de frutos para a colheita da próxima estação. Já ocorreu de varrer o horizonte com os olhos e enxergar ali o terreiro que no bairro do Tomba, próximo ao centro de Lençóis e um dos mais populosos. Mas a ideia sempre é momentânea e nunca virou um projeto.
“Não me vejo tirando o terreiro de lá e colocando aqui. A gente precisa ficar onde está, somos uns dos poucos”, diz. O terreiro dele divide espaço com a casa onde mora com a família – esposa, dois filhos, mãe e avó. ‘Pepê’ é pai de três, mas o mais velho, João Pedro Gabriel, de 5 anos, mora com a mãe. Na vida do curandeiro, a religião está presente em tudo, inclusive no nome do segundo filho com a atual esposa, Ediclécia, com quem é casado há dois anos.
Ela estava grávida de dois meses quando a entidade Ogum de Ronda se fez anunciar e mostrou que o nome do rebento precisaria ser Pedro Antônio. “Meu mais velho também já tem calinho nas mãos de tocar [atabaques do terreiro]”. A mais nova, Kemile Gabriele, está com um ano e logo mais deverá seguir o mesmo caminho.
“Sempre que vou me concentrar, Pedro Antônio, hoje com 2 anos, pede silêncio e diz: “o santo vai chegar no meu pai”. Os atabaques tocam e ele fica no canto só dançando”, conta o pai, com tom de orgulho. “Agora, o que eles quiserem seguir, eu não posso fazer nada, só mostrar a origem do pai deles, a nossa origem, para eles entenderem”.
‘Pepê’ passa horas concentrado com os orixás dentro do terreiro
Depois do trabalho, seja nas ruas de Lençóis ou na roça, é naquele quarto que ‘Pepê’ pode ser encontrado. “Fico até meia noite concentrado. Antes de começar nesse trabalho de agora, há uns cinco meses, era só roça e terreiro”, lembra. O orixá do ori (cabeça) de Pepê é Oxóssi, mas o Boiadeiro é o chefe do terreiro. “Oxóssi deixou o Boiadeiro como esse chefe do terreiro, é da confiança dele”.
Os mistérios também envolvem o jarê, como religião de matriz africana e indígena. O conhecimento de Pepê é colocado em prática. Dos anos de curandeiro, por exemplo, ele lembra do caso de uma jovem que teimava em atear fogo em partes da própria casa. Ela tinha esse hábito e nada a fazia parar.
Era problema para curandeiro dar jeito e foi Pepê quem a recebeu. “Ela chegou aqui, Ogum rezou para ela e ela nunca mais fez isso”. Há uma semana, ele também diz ter sido salvo – mais uma vez – por essas forças que conhece desde bebê.
O orixá Exu avisou, enquanto ele caminhava em direção a roça, que era preciso estar atento, pois um animal peçonhento se delinearia no caminho. Pouco depois, uma cascavel quase cruzou Pepê, que, avisado, se livrou do perigo. Jornal da Chapada com informações de Correio 24 horas.