Por Rafaella Rios*
O filme ‘Marighella’ foi exibido no assentamento do MST, Jacy Rocha, no município de Prado, no extremo sul da Bahia, junto aos diversos movimentos sociais de luta por igualdade e justiça social. Essa película protagonizou um reencontro com os movimentos sociais depois de meses de isolamento por conta da pandemia de covid-19. O momento contou com a participação de diversas personalidades de esquerda do Brasil e da Bahia e foi um marco na resistência ao governo Bolsonaro.
Pode-se se dizer que a obra audiovisual tem efeito de registro histórico do nosso tempo e anseios, além de reforçar o sentimento de pertencimento, patriotismo e identidade com a história da resistência popular no Brasil. Elegendo o tema da ditadura como um assunto a ser lembrado e estudado para interferir na memória coletiva e que se compreenda as suas nuances e se conscientize humanamente uma nação que seja contra as práticas de tortura, perseguição política, autoritarismo e golpe de estado.
No período do regime, junto às produções artísticas, midiáticas e acadêmicas reivindicadas e construídas pela militância e movimentos sociais, estavam a União Nacional dos Estudantes (UNE), e o movimento estudantil. O esforço era para lembrar as violências exercidas comprovadamente pelos militares da época, promover justiça às vítimas e reverenciar aqueles e aquelas que tombaram resistindo.
Em contraponto a isso, via-se os argumentos rasos e sem embasamento dos defensores da ditadura ao insistirem no apagamento ou, muitas vezes, na defesa de elementos que conflitam com os direitos humanos. E o filme de Wagner Moura retrata esses conflitos! É mais do que sabido que o processo vivido em 1964 se caracteriza como um golpe de estado exercido pelo poder das forças armadas com viés político e ideológico de extrema direita. Esses fatos precedem qualquer interpretação ou narrativa que possa existir, pois as evidências históricas frutos do trabalho árduo dos historiadores, existem e possuem respaldo no campo acadêmico das Ciências Humanas e Sociais.
Além disso, podemos afirmar a existência de abusos, violências e práticas de tortura por parte das forças armadas durante esse período, que são comprovadas a partir de registros dos mais diversos possíveis: fotografias, documentos oficiais e não oficiais e até mesmo os relatos dos envolvidos nos casos. A luta armada e não armada, os movimentos estudantil, negro e operário e as greves são exemplos das diversas vertentes de resistência popular, que conflitaram com o governo autoritário e precisam ser lembrados. É função dos defensores dos direitos humanos contribuir para que esses sejam lembrados como exemplos de cidadãos que lutaram pelos direitos básicos de sobrevivência, livre expressão política e são, portanto, símbolos da luta pela democracia e direitos humanos no Brasil.
Ao longo da história há um esforço da militância em lembrar do que aconteceu nos ‘anos de chumbo’, enquanto que para os militares interessava mais deixar cair em esquecimento. Houve nas décadas de 60 e 70, o início do que chamamos de “batalha da memória” por parte das vítimas, militantes e movimentos sociais da época em construir uma movimentação massiva de denúncia aos atos de tortura e violência por parte dos militares e pressionar para que o regime caísse em contradição. Nesse movimento de denúncia, diversas foram as frentes utilizadas.
É ampla a produção cinematográfica que faz referência às vítimas da ditadura militar. Desde a época do regime, até os dias atuais, pode-se elencar inúmeras produções com esse viés que contribui para a formação da memória histórica do período e, consequentemente, para a consciência histórica, política e cidadã da população brasileira. O longa-metragem dirigido por Wagner Moura aparece na cena brasileira como um exemplo da utilização do cinema como instrumento da luta popular e de denúncia ao autoritarismo. Afinal, lançado em pleno governo Bolsonaro, torna-se impossível não relacionar a luta de Carlos Marighella aos atos de resistência presentes nos dias atuais.
Para compreender as nuances da disputa pela memória em qualquer que seja o contexto, é fundamental reconhecermos o aspecto social e coletivo da memória e sua importância enquanto elemento de disputa na formação da identidade nacional e pertencimento. Ao completar 40 anos do golpe, em 2004, esse debate se torna cada vez mais presente e constante. O Brasil havia acabado de eleger um presidente que lutou diretamente contra o regime e, posteriormente, elegeu também a primeira mulher presidente (Dilma Rousseff), que foi torturada e sofreu graves violências na ditadura por ter participado dos grupos de resistência. Esses elementos reafirmam a efervescência e pressão social em se constituir a ‘Comissão da Verdade’ para que os culpados fossem julgados.
É evidente que as narrativas mais diversas continuaram sendo utilizadas até os dias atuais, o negacionismo de Bolsonaro, a exaltação a torturadores na Câmara de Deputados durante o impeachment da presidenta Dilma e a constante tentativa do governo federal atual em ferir os direitos humanos, são exemplos disso. Porém, nesse momento da história, há uma hegemonia na interpretação de que a justiça precisava ser feita e, por isso, diversos foram os avanços no sentido de reconstituir e obter verdade sobre os acontecimentos, acessar os arquivos engavetados, responsabilizar os criminosos e homenagear as vítimas e os símbolos de resistência. Os movimentos sociais têm a responsabilidade de reforçar esse processo.
E temos que reconhecer a importância de reforçar a luta pela democracia, pelo direito à vida e à livre expressão e, para isso, reverenciar aqueles que tombaram na luta em resistência ao regime é fundamental. As reivindicações dos movimentos sociais atuais são continuidade do legado de Marighella. A luta pela reforma agrária, por uma educação pública inclusiva de qualidade, contra o genocídio do povo negro, a violência contra a mulher e a LGBTQIA+fobia só existem e se reverberam por conta dos que lutaram antes de nós.
E é com base nisso que a exibição do longa ‘Marighella’ no assentamento Jacy Rocha, em Prado, é considerada um marco na luta pela memória e reverência aos verdadeiros heróis brasileiros. Uma página da história recente foi contada, mesmo que os meios oficiais não contem. Depositamos esperança naqueles e naquelas que sofrem há 3 anos com o governo Bolsonaro. Nesse contexto, cabe a nós, movimentos sociais e em especial os de juventude, a árdua tarefa de contribuir para a derrubada dos muros do esquecimento, gastando nossas vozes com o compromisso coletivo da luta e do sonho que se sonha junto.
*Rafaella Rios é estudante de história da Ufba, Diretora da UNE e militante do Coletivo Quilombo