O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou trechos da Lei do Estado Democrático de Direito que poderiam, entre outros efeitos, agravar a pena de militares ou parlamentares que participaram ou impulsionaram os atos golpistas do dia 8 de janeiro, em Brasília.
A Lei do Estado Democrático foi aprovada no Congresso para substituir a Lei de Segurança Nacional, herança da ditadura militar. O novo dispositivo entrou em vigor em 2021, em meio a uma escalada nas declarações golpistas de Bolsonaro, que chegou a colocar em dúvida a realização das eleições de 2022.
O Congresso aprovou a nova legislação, que depois foi sancionada pelo presidente, mas com cinco vetos que pouparam militares, políticos e propagadores de fake news.
Na visão de especialistas ouvidos pela Folha, o texto, não tivesse os trechos rejeitados, poderia ajudar a enquadrar os golpistas envolvidos na invasão dos três Poderes, no último dia 8.
Dentre os vetos, foram derrubados os artigos que aumentavam a pena quando crimes contra o Estado de Direito fossem cometidos por militares ou outros agentes públicos, inclusive com a perda respectivamente de patente e cargo ou função.
“A questão é simples: houve o ato de tentar dar um golpe. Se for militar, por exemplo, [a lei] poderia aumentar a pena dele e ainda dar outras consequências, como a perda de patente”, afirma o ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Luiz Streck, que trabalhou na elaboração da nova lei.
No caso de parlamentares, eles não poderiam perder o mandato, mas sim, caso o veto não existisse, ter a punição aumentada — o texto rejeitado previa acréscimo de um terço na pena para crimes cometidos por agentes públicos e aumento de metade para militares.
“O texto fala de perda de função ou cargo. A perda do mandato ainda ficaria para as mesas das Casas Legislativas decidirem, o que é uma previsão constitucional”, pondera Fabiana Santiago, professora de direito e autora de um livro sobre a Lei de Segurança Nacional.
“Um militar [envolvidos na invasão] provou o não comprometimento com as instituições democráticas, assim como o funcionário público. Claro, podem haver processos administrativos, mas é um caminho mais complicado. Com aplicação da lei penal, seria uma sanção muito mais condizente com a gravidade da conduta”, acrescenta o professor de direito constitucional da PUC-SP Georges Abboud.
Outro veto foi ao trecho que previa punição de até cinco anos, mais multa, para quem promovesse ou financiasse “campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.
Streck entende que, não houvesse o veto, o texto poderia enquadrar aqueles que incentivaram os atos, inclusive parlamentares — desde que por meio de mentiras relacionadas às eleições.
Abboud acrescenta que podem ser considerado como comprometedoras à higidez das eleições tanto fake news e atentados contra partidos feitos durante o processo eleitoral, mas também notícias falsas sobre o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o presidente eleito ou as urnas, por exemplo, mesmo após o fim da votação.
“Comprometer a higidez do processo eleitoral não me parece só algo voltado exclusivamente à realização da votação. É também a disseminação de notícias que geram revolta ou não aceitação do resultado das urnas”, disse.
Santiago concorda, e afirma que, fosse o dispositivo limitado ao espaço de tempo do período eleitoral, ele deveria estar dentro da legislação eleitoral, não do Código Penal.
Ela pondera, no entanto, que a aplicação deste artigo — caso ele não tivesse sido rejeitado —, ainda teria que ser debatida, pois não é claro se é passível de punição apenas quem produz o conteúdo falso ou também quem o propaga.
“Por mais que o objetivo da norma não seja punir quem reproduz o conteúdo nas redes, essa pessoa é essencial para a configuração do estrago à higidez eleitoral”, afirma.
Um outro trecho vetado dava direito a partidos políticos entrarem com uma ação em caso de inércia ou pedido de arquivamento por parte da Procuradoria-Geral da República (PGR) frente a um processo — marcas do órgão durante o governo de Bolsonaro, quando sua autoridade máxima, Augusto Aras, pediu para arquivar o inquérito dos atos antidemocráticos.
Ambos os advogados afirmam que, caso os vetos sejam derrubados pelo Congresso, aqueles que usaram fake news para impulsionar o ato golpista do dia 8 ou participaram da invasão aos três Poderes não podem mais ser enquadrados nesses artigos pois a lei não poderia retroagir.
O tema entrou na mira do PT de Luiz Inácio Lula da Silva, que trabalhará para que o Congresso paute a análise dos vetos de Bolsonaro nos 30 primeiros dias da próxima Legislatura — os trechos vetados passariam a valer como lei a partir do momento de uma eventual derrubada.
Desde a semana da invasão dos três Poderes, deputados do partido estudaram propor um projeto de lei para alterar o texto da Lei do Estado Democrático com a finalidade de endurecer a punição a deputados ou senadores que participassem ou apoiassem atos antidemocráticos como os de 8 de janeiro, o que incluiria a previsão de inelegibilidade.
Ao mesmo tempo, parlamentares da sigla entendem que o melhor é deixar o Poder Judiciário agir contra os golpistas e focar as ações legislativas nos vetos e na abertura de eventuais processos administrativos no Conselho de Ética.
“A gente também não pode ficar inventando coisa. Se o Judiciário, o Ministério Público e as polícias não precisarem, é desnecessário [promover mudanças na legislação], uma perda de tempo em um país que tem que cuidar do emprego, da educação, da saúde”, afirmou à Folha o líder do partido na Câmara, Zeca Dirceu (PT-PR).
O PT e o Psol protocolaram na PGR denúncias contra parlamentares, eleitos ou em mandato, que teriam relação com os atos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já afirmou que não vê elementos suficientes para que a Procuradoria peça a condenação dos congressistas. Da Folha de São Paulo.