A tentativa de o governo do presidente Lula (PT) impor regras de combate ao golpismo nas redes sociais a partir de MP (medida provisória) gerou reação não só em empresas de tecnologia, mas entre ativistas de direitos digitais. A avaliação é que a sensibilidade do tema demanda uma discussão ampla, não com a rapidez prevista no rito de uma MP. A sugestão de medida provisória é do Ministério da Justiça e cabe agora a outro órgão do governo, como Casa Civil ou a AGU (Advocacia Geral da União), acatá-la.
O teor do projeto foi antecipado pela Folha, mas a minuta ainda não foi divulgada. Elaborado na pasta de Flávio Dino, o texto poderá ser reformulado pelo governo antes de ser enviado ao Congresso. Ao solicitar ao Ministério da Justiça o projeto, que pertence a um pacote antigolpe, Lula demandou urgência ao tema em decorrência dos ataques às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro. Procurado, o governo federal não respondeu se deve manter a proposta como MP ou transformá-la em projeto de lei. A sociedade civil organizada busca pressionar para que Lula opte pela segunda opção.
“As duas possibilidades existem e serão analisadas pelo presidente da República. Assim como o próprio conteúdo do texto. O que existe é uma proposta do Ministério da Justiça, ainda em análise interna no governo”, diz Dino à Folha. A Coalizão Direitos na Rede, que reúne mais de 50 entidades e é favorável a uma regulação, divulgou carta na noite desta sexta-feira (27) afirmando que uma medida provisória é incompatível com o debate sobre uso da internet e que traz insegurança.
“O princípio da governança multissetorial da internet, respeitado pelo Brasil, requer que matérias como esta sejam discutidas com a participação dos diferentes setores atingidos e interessados na regulação”, diz. A coalizão acrescenta ser necessário equilibrar novas responsabilidades às plataformas digitais com a “garantia da proteção de direitos humanos, como ocorreu na discussão do Marco Civil da Internet”.
Além de crítica ao rito, a carta afirma que, diante do que foi publicado até agora, a proposta atribuiria às plataformas, “sem critérios objetivos e sem viabilização do monitoramento por outros entes, responsabilidade de vedar a circulação de conteúdos”, o que ampliaria o poder das empresas sobre as conversas online.
Segundo o texto da pasta, as plataformas terão o dever de impedir que se dissemine conteúdo já considerado ilegal, como pedido da abolição do Estado democrático de Direito, incitação à violência para deposição do governo e à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes constitucionais. As empresas ainda teriam de apresentar relatórios de transparência periódicos detalhando como removeram ou reduziram o alcance desse tipo de conteúdo. Elas seriam obrigadas a removê-los usando suas próprias regras de uso.
O texto da pasta também cria indiretamente uma exceção ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, que só responsabiliza as empresas civilmente caso elas não retirem publicações do ar após ordem judicial. Ataques ao Estado de Direito seriam encarados como nudez não consentida, que hoje deve ser removida das plataformas sem necessidade de ordem judicial.
Para Bruna Martins dos Santos, pesquisadora visitante no WZB, o Centro de Ciências Sociais de Berlim, os ataques e os problemas de moderação das plataformas no dia 8 podem levar à ideia de que uma regulação é urgente, mas é preciso estar atento ao risco de vigilantismo.
“Algumas questões são altamente subjetivas, como por exemplo a definição de uma linguagem golpista. É necessário saber quem seria a instituição pública a definir o que é ou não ilegal, porque deixar essa interpretação só para as plataformas é um risco à liberdade de expressão dos usuários”, diz.
O texto do Ministério da Justiça trata os conteúdos que possam configurar crimes contra o Estado democrático de Direito tipificados em trecho específico do Código Penal e crimes de terrorismo explícitos pela Lei nº 13.260. Outro ponto levantado por especialistas é que outros países têm órgãos de autorregulação no qual as plataformas podem recorrer em casos de dúvidas sobre os conteúdos.
“A Alemanha tem legislação sobre o tema tipificada há décadas. O arcabouço legal alemão já tem consolidação e história de aplicação. Não temos isso no Brasil. São contextos culturais totalmente distintos”, diz Renata Mielli, do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.
“Somos muito críticos às redes sociais, que mantiveram, por exemplo, lives remuneradas convocando para atos que atentavam contra o Estado. As plataformas tinham de derrubar isso imediatamente, têm instrumentos para isso, mas esse enforcement [garantia] não precisa vir sob uma MP”, acrescenta.
O texto da pasta de Dino também prevê regras semelhantes à resolução do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) adotada a dez dias do segundo turno da eleição para casos em que a Justiça determine a retirada de um conteúdo. A norma estabelecia prazo de duas horas após notificação para remoção de publicação, sob pena de multa de R$ 100 mil a R$ 150 mil por hora de descumprimento.
A resolução dividiu opiniões: de um lado, foi eficaz para ajudar a frear o golpismo; de outro, bloqueou contas integralmente. Especialistas dizem que, até agora, não há instrumentos concretos para analisar as consequências dessa regra. “A Justiça pode ter entendido que isso funcionou muito bem no processo eleitoral e parece ter decidido transplantar essa experiência para fora do TSE”, diz André Giacchetta, advogado do escritório Pinheiro Neto que atuou por plataformas no tema de propaganda eleitoral na internet.
“Se essa é uma possibilidade, como a gente avalia a experiência no TSE. Houve excessos? Quais foram?”, questiona. A visão do Ministério da Justiça é que a proposta não pretende debater uma regulação integral das redes sociais, mas gerar estabilidade para que novos episódios de depredação e atos de violência, em grande parte articulados pela internet, não se repitam. Da Folha de São Paulo.