Há quem se surpreenda ao saber que a premiada Vinícola UVVA, localizada em Mucugê, na Chapada Diamantina, não merece atenção apenas pela excelência de seus vinhos. O espírito de inovação que é marca registrada do empreendimento fez ampliar os horizontes do projeto para transformá-lo também em um celeiro de arte. O curador Paulo Herkenhoff foi uma das pessoas impactadas por essa descoberta ao visitar a exposição ‘O Tempo Espelhado’, do artista baiano Marcos Zacariades, exposta em uma galeria na cave subterrânea da vinícola. Foi tamanha a potência dessa conexão que o crítico assumiu a missão de escrever um livro sobre a mostra. A obra, já em fase de produção, tem lançamento previsto para o primeiro trimestre de 2024.
“Para mim foi uma grande revelação encontrar aquela exposição, naquele lugar, com aquela força. Embora eu não tenha visto tudo o que se expôs este ano no Brasil, vi bastante coisa e acho difícil que tenha algo que a supere em rigor formal, em vigor político e intelectual. O trabalho do Marcos Zacariades tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É uma obra épica”, exulta o crítico de arte, que traz na bagagem experiências na curadoria e gestão de instituições respeitadas como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, Museu de Arte do Rio (MAR) e Bienal de São Paulo.
Herkenhoff se refere a um trabalho que proporciona, literalmente, uma imersão na arte. A mostra está montada no interior da cave da vinícola, um espaço nobre localizado no subterrâneo da vinícola. O local foi especialmente adaptado para receber a intervenção artística e ganhou uma nova atmosfera para abraçar cerca de 20 obras, entre esculturas, instalações, vídeos e assemblagens, algumas com dimensões que passam dos quatro metros. São trabalhos produzidos nas últimas duas décadas pelo artista, que é formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e, desde 2002, está à frente da Galeria Arte & Memória, na pequena vila de Igatu, a poucos quilômetros de Mucugê.
Entre eles estão a instalação ‘O Banquete de Migalhas e os Comensais da Própria Carne’ (2014), produzida com restos de madeira encontrados em florestas devastadas pelo fogo e pelo desmatamento desordenado; ‘O Silêncio das Bombas’, elaborada com material natural encontrado em Igatu e concebida em 2005 em memória dos 60 anos de lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima; e ‘Movimento Etérico’, que apresenta um painel luminoso com mais de 800 fotografias de lençóis brancos levitando sob um céu azul. Trata-se de uma referência ao ritual do Terno das Almas, manifestação religiosa tradicional da região, que havia caído no ostracismo e o artista resgatou com a ajuda de um grupo de mulheres da comunidade.
Usina de pensamento e capital simbólico
“Dentro daquela usina de pensamento surgem dramas, poesia e a questão do trabalho. É o que eu chamo de diagrama de alteridade, de sociabilidade. Uma arte que pensa na devolução à sociedade, pensa no outro, incorpora o outro no trabalho e incorpora o outro também como sujeito econômico da obra”, analisa Paulo Herkenhoff. “Foi uma enorme satisfação compartilhar e vivenciar a visita do curador à minha exposição. Seu olhar atento a cada obra, a interpretação e pontuações feitas durante o percurso ratificam o propósito de produzir uma arte cujo caráter social e antropológico é o lastro para compreender a relação do ser humano com a natureza, em confronto com as questões que regem o nosso tempo”, retribui Marcos Zacariades.
Essas interseções também marcaram uma intervenção temporária na área externa da vinícola UVVA, no início do mês de junho, com quatro instalações efêmeras. Ao ar livre, o artista recriou uma de suas obras mais marcantes, ‘Shen – Cuidado, Zelo, Precaução’ apresentada em Taiwan, em 2007, para provocar uma reflexão sobre a pena de morte, inspirada na história de três jovens que haviam sido injustamente condenados. A instalação marcou a paisagem com 1.600 ovos acomodados em ninhos coloridos.
Também fizeram parte da ação ‘Celebração ao caos’, em que os ovos reaparecem simbolicamente como protagonistas da dicotomia vida-morte; ‘Se precisa, se preserva’, com bacias que remetem à lida de lavadeiras na beira dos rios; e ‘Qual é a cor da sua labuta?’, fruto da observação do trabalho de mulheres que catam lenha. “Nessas obras há um flerte com a arte povera, movimento italiano marcado pela efemeridade e pelo uso de materiais ordinários. Mas, sobretudo, quis apresentar uma arte inclusiva, que destacasse o protagonismo das pessoas”, diz Zacariades, que provocou a interação de estudantes e mulheres da comunidade.
Essa iniciativa inusitada também entrou no radar Paulo Herkenhoff, que destaca o caráter disruptivo da vinícola UVVA, inaugurada há pouco mais de um ano e já agraciada com prêmios importantes como Brazil Wine Challenge, Vinalies, Guia Descorchados e Decanter World Wine Awards, além de ter quatro rótulos acima de 90 pontos, segundo avaliação de James Suckling.
“Para além da cultura do vinho, ali existe arte. A vinícola possui uma arquitetura espetacular, com um mobiliário de designers brasileiros como Sergio Rodrigues, então há um processo de valorização da cultura brasileira. Quando se trata de uma galeria de arte que se mistura às barricas, que mostra o solo da Chapada Diamantina com suas camadas, estamos falando de uma totalidade de percepção do mundo, da geografia humana, da geografia cultural e dessa correlação entre culturas. A UVVA é um empreendimento moderno, que entende que o capital financeiro também deve ser convertido em capital simbólico”, avalia. As informações são de assessoria.