Em 2009, um agricultor dirigia seu trator pelo seu campo de milho no sul do Brasil, quando sentiu o veículo afundar subitamente no solo e se inclinar para um dos lados. O trator estremeceu até parar. O produtor agrícola desceu e viu que a roda havia afundado profundamente no solo seco. Para sua grande surpresa, o trator havia quebrado sobre o que parecia ser o topo de uma cavidade subterrânea.
Pesquisadores logo ficaram sabendo dessa descoberta incomum e foram até a fazenda investigar o ocorrido. Eles ficaram surpresos ao descobrirem um túnel com cerca de 2 metros de altura, quase 2 metros de largura e cerca de 15 metros de comprimento, que atravessava o terreno, passando exatamente por baixo da casa do fazendeiro.
E há mais: profundas marcas de garras nas paredes do túnel indicavam que seus últimos habitantes não eram seres humanos. O agricultor havia se deparado com um tema intrigante da paleontologia, ainda em desenvolvimento. Ele descobriu uma paleotoca – um túnel pré-histórico escavado na rocha por animais gigantes.
O geólogo Luiz Carlos Weinschutz, um dos cientistas que visitaram a fazenda, concluiu que o túnel foi o trabalho de uma preguiça-gigante, ou de um tatu-gigante, escavado pelo menos 10 mil anos atrás.
Um estudo científico descreveu as preguiças-gigantes como “hamsters do tamanho de elefantes”, muito distantes das lentas preguiças que vivem nas árvores hoje em dia. Elas cresciam até quatro metros de comprimento e andavam nas quatro patas, embora pesquisas indiquem que algumas conseguiam ficar de pé e andar como bípedes.
Quase 100 espécies diferentes de preguiças povoaram o continente americano entre 10 mil e 15 milhões de anos atrás, ao lado dos tatus-gigantes do tamanho de carros que também escavavam longos túneis pelas rochas do Brasil.
Ouvi falar em paleotocas pela primeira vez em 2015, quando a imprensa noticiou a descoberta de um túnel com 100 metros de comprimento, escavado por preguiças-gigantes no Estado de Rondônia. Foi a primeira paleotoca encontrada na região amazônica.
Mas foi nas férias que passei anos atrás no sul e sudeste do Brasil, que tive a chance de visitar uma paleotoca pessoalmente. Durante a viagem, visitei o Geoparque Caminhos dos Cânions do Sul, entre os Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. O parque abriga diversas paleotocas.
Depois de uma hora de caminhada através de um cânion coberto pela floresta em Santa Catarina, cheguei ao meu destino – um túnel com dois metros de altura escavado em uma grande rocha desgastada.
Seu interior era frio e escuro. Suas superfícies curvas foram desbastadas por pelos de preguiças-gigantes se esfregando contra elas por milhares de anos. Marcas inconfundíveis de longas garras riscam as paredes. Parece que estou entrando em uma toca de coelho gigantesca.
Heinrich Theodor Frank, geólogo de profissão e especialista em paleotocas de coração, afirma que, ao entrar em um desses túneis, “você encontra um livro aberto. Você observa, você sente que isso não foi feito por seres humanos.” Ele tem razão.
Descoberta e preservação
Atualmente, a maior parte das paleotocas é repleta de sedimentos, mas algumas permaneceram limpas, no todo ou em parte, como aquela que visitei e o túnel que o fazendeiro encontrou no campo de milho.
A descoberta de 2009 surgiu quando começava a crescer o interesse pelas paleotocas, depois que centenas delas foram identificadas no sul e no sudeste do Brasil. Nos últimos 15 anos, mais de 1,5 mil paleotocas foram encontradas na região, hoje reconhecida por ter a maior concentração de paleotocas construídas por animais gigantes do mundo.
Ninguém sabe ao certo por que existem tantas paleotocas no sul e no sudeste do Brasil. A maioria fica em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, mas existem exemplos notáveis também em Minas Gerais, como um grupo de seis túneis com 40 metros de extensão que conduzem até câmaras com 10 metros de largura e 4 metros de altura.
E, em junho deste ano, a Justiça mineira determinou a proteção contra a atividade humana de uma paleotoca com 340 metros de comprimento na Serra do Gandarela (região metropolitana de Belo Horizonte). É a maior paleotoca já encontrada no Estado.
Enquanto inúmeras paleotocas podem ser encontradas na América do Sul, nenhuma foi registrada na América do Norte. “É algo que não tem explicação lógica, pois a megafauna percorria todo o continente. Deveria haver túneis em outros lugares”, segundo Frank.
Alguns especialistas afirmam que a alta concentração de paleotocas no sul e no sudeste do Brasil se deve simplesmente ao fato de que a região é um centro de pesquisas paleontológicas. Mas outros discordam, indicando que a evolução geográfica influencia os diferentes comportamentos entre as espécies ao longo do continente americano. Na época da megafauna, a temperatura nas Américas era até 10 °C inferior aos níveis atuais. E o continente também era muito mais seco.
Entre mitos e lendas
Os pesquisadores e moradores locais acreditaram por muitos anos que os túneis fossem construções deixadas por civilizações do passado. E que as marcas de garras, na verdade, seriam de picaretas. Algumas paleotocas contêm arte rupestre, como a Toca do Tatu, em Santa Catarina. O desenho inscrito nas paredes parece mostrar o Sol emitindo seus raios e grupos de triângulos representando montanhas.
Mas, como a arte é gravada nas rochas e não pintada, sua datação é quase impossível, segundo a arqueóloga Lizete Dias de Oliveira. Ninguém sabe ao certo quem fez as marcas na rocha e o que elas significam. Comunidades indígenas regionais provavelmente sabiam da existência das paleotocas antes que elas fossem cientificamente identificadas, segundo indicam as referências a túneis existentes na sua tradição oral.
Uma lenda do povo Kaingang, originário do Rio Grande do Sul, conta que uma enorme inundação fez com que seus pais ancestrais nadassem até os picos das montanhas, onde escavaram um caminho em busca de abrigo.
Outras histórias do povo Kaingang indicam que eles conheciam as tocas construídas pela megafauna. Uma lenda popular para crianças conta a história de uma família que desceu por um buraco de tatu para usufruir da abundância de alimentos no seu interior. Mas um homem branco cortou a corda por onde eles desceram e tomou a sua terra, com a família presa no subterrâneo.
O enredo exato dos mitos varia. Mas, para o povo Kaingang, a precisão não é tão importante quanto a própria história em si. “Para o povo Kaingang, não existem mitos, pois tudo o que é contado pelos indígenas mais velhos é considerado verdade”, segundo a pesquisadora Cláudia Aresi, em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sobre as transformações culturais e o território do povo Kaingang.
Outra teoria relacionada às paleotocas afirmava que os túneis escondiam riquezas que teriam sido deixadas pelos jesuítas. Esta possibilidade levou caçadores de tesouros a revistar as cavernas em busca da suposta fortuna, mas nada foi encontrado além de poeira e sedimentos.
“Os caçadores de tesouros são um horror para a arqueologia”, afirma Oliveira. “Eles prejudicam e invertem o solo, fazendo com que o mais novo se torne mais velho e o mais antigo se torne mais recente.” Oliveira destaca que isso dificulta o estudo dos sedimentos em busca de novas indicações que possam trazer revelações sobre os túneis.
Obra dos animais
As marcas das garras acabaram levando os cientistas a concluir que os túneis foram construídos pela antiga megafauna local, particularmente por tatus-gigantes e preguiças-gigantes.
“Analisamos os ossos dos animais que viveram nessa região nos últimos dois milhões de anos”, explica Frank. “Animais como cavalos, tigres-dentes-de-sabre e elefantes não cavavam. Você precisa procurar animais que têm garras, então só há duas opções: as preguiças-gigantes e os tatus-gigantes.”
Weinschutz está agora mapeando as paleotocas de Santa Catarina em 3D, para tentar encontrar padrões nos túneis que possam revelar o biomecanismo de escavação dessas grandes construções. Ele também procura traços de pelos antigos para ajudar a identificar a espécie que as construiu. “Este estudo ainda é novo, temos anos e anos de pesquisa à nossa frente nesta área”, afirma ele, entusiasmado.
Os resultados dos estudos poderão esclarecer alguns dos motivos que levaram os animais a construir túneis tão grandes. A maioria dos cientistas defende que sua finalidade era cuidar dos filhotes, regular a temperatura corporal ou até a hibernação, mas a razão exata permanece um mistério. E os especialistas suspeitam que cada um dos túneis teria levado séculos ou até milhares de anos para ser construído, o que sugere que as preguiças e tatus viviam em grupos sociais familiares.
“Cada geração avançava um pouco mais e, depois de todos aqueles anos, eles criavam uma grande caverna”, explica Frank. A megafauna (tanto os tatus quanto as preguiças) deve ter “desenvolvido uma força absurda nos braços” para conseguir cortar a rocha e os rígidos sedimentos que até uma picareta teria dificuldade de perfurar, segundo Weinschutz.
Intrigado com o processo de construção das tocas, visitei o Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro. Pude, então, observar o esqueleto de uma preguiça fossilizada e ter uma ideia do seu tamanho.
Seu esqueleto alongado era do tamanho de um cavalo e sua garra curva cobria minha mão esticada. Enquanto eu segurava aquela garra, meus pensamentos se dirigiam à paleotoca que visitei, com suas paredes profundamente riscadas – o verdadeiro tesouro daqueles lares antigos.
Os tatus e as preguiças-gigantes do passado podem ter desaparecido há muito tempo, mas suas histórias permanecem, marcadas para sempre no sul do Brasil. São o retrato de um mundo que continua sendo um mistério para nós, até hoje.
Como visitar as paleotocas
O Geoparque Caminhos dos Cânions do Sul abriga diversas paleotocas abertas ao público. Os túneis são sinalizados e é possível caminhar até eles:
– O complexo de paleotocas de Engenho Velho fica no município catarinense de Jacinto Machado, a uma hora e meia de caminhada (ida e volta).
– A Toca do Tatu, onde os visitantes podem observar arte rupestre, fica no município de Timbé do Sul, também em Santa Catarina, na trilha chamada Portal do Palmiro. Na mesma rota, ficam as paleotocas de Três Barras, no município de Morro Grande (SC). São quatro horas de caminhada, ida e volta.
Para fazer a visita, é importante contratar um guia experiente que possa oferecer equipamento de segurança, como capacetes, roupas de proteção, máscaras e luvas. Entre em contato com o parque para mais informações.Jornal da Chapada com informações do portal BBC.