Paciente psiquiátrica com síndrome do pânico, Rafaela, 54 (nome fictício) arquiteta e professora universitária, começou a se interessar pelos psicodélicos após assistir a um documentário a respeito do uso terapêutico de drogas alucinógenas. Chamou a sua atenção a psilocibina, substância presente nos cogumelos do tipo Psilocybe, que vem sendo estudada para tratamentos de transtornos mentais, como depressão, ansiedade e dependência.
Ela começou a se informar sobre o assunto e encontrou pesquisas recentes realizadas por cientistas das principais universidades do planeta, como a britânica Imperial College. Uma dessas investigações comparou a psilocibina com o antidepressivo escitalopram.
O estudo foi realizado durante um período de seis semanas, com 59 pacientes com transtorno depressivo maior (depressão unipolar) moderado a grave, de longa data. Os resultados favoreceram os cogumelos mágicos em relação ao antidepressivo.
Apesar das evidências de estudos científicos, Rafaela ainda tinha dúvidas. Afinal, a maioria das drogas alucinógenas é proibida desde o final da década de 1960.
Vale esclarecer que a proibição não teve base científica, mas política. Na verdade, os hippies, que começaram a aprontar todas na época, embalados por todo tipo de droga, incluindo as psicodélicas, tiveram um papel importante nesse processo.
Nos alucinados anos de 1960, o LSD virou uma espécie de rito de passagem dos jovens. Para o então presidente norte-americano Richard Nixon, que não nutria simpatia pela narrativa de paz, amor e liberdade do movimento, era o cenário perfeito para lançar a campanha War on Drugs (Guerra às drogas).
Com muito investimento em publicidade negativa, além do apoio da mídia e até de cientistas, os Estados Unidos conseguiram espalhar pelo mundo uma onda de pânico moral e de desinformação em torno dos alucinógenos.
A cruzada proibicionista de Nixon mantém até hoje a grande maioria desses compostos no limbo da proibição. E o pior: na categoria mais restritiva, como drogas de abuso, sem valor terapêutico, o que contraria o conhecimento científico que já estava disponível bem antes de serem proscritas.
Entretanto, há alguns anos, contrariando os conservadores, as drogas psicodélicas voltaram a ser estudadas. E as evidências de seus benefícios para diferentes patologias são cada vez mais contundentes. Resultados pressionam por uma reavaliação do status legal dessas substâncias.
Um exemplo das mudanças em curso é a Austrália que em julho de 2023 se tornou o primeiro país a aprovar a psicoterapia assistida por substâncias psicodélicas com psilocibina e o MDMA (popularmente chamada de ecstasy).
Nos EUA, há também a expectativa de que em 2024 o MDMA seja aprovado para tratamento de Tept (transtorno de estresse pós-traumático).
“Não é algo que se deva fazer de forma autônoma”
Diante de tantos sinais positivos, Rafaela, insatisfeita com os resultados do tratamento com medicamentos alopáticos, buscou um médico psiquiatra em Salvador, onde vive, aberto ao uso terapêutico de psicodélicos.
Após uma consulta, recebeu sinal verde para se submeter à experiência. Mas com uma dica importante: escolher pessoas de confiança e se certificar sobre o produto que irá consumir.
A professora começou a procurar um local seguro. “Queria fazer com a presença de um médico”, conta. “Não é algo que se deva fazer de forma autônoma ou em qualquer grupo que encontrar”.
Pela internet, ela encontrou o CiênCéu, um centro espiritual focado no uso ritual de psicodélicos, sediado em Barra Grande, na península de Maraú, litoral sul baiano.
Apesar de o grupo se apresentar como uma espécie de igreja dos ‘cogumelos mágicos’, Rafaela conta ter sido atendida inicialmente por uma médica.
Rafaela passou por um protocolo que envolveu anamnese (uma entrevista para conhecer o paciente) e exames de sangue e eletrocardiograma.
Durante três meses antes da sessão com psilocibina, ela foi orientada a usar a droga na forma de microdose, que não causa os efeitos alucinógenos.
Só após esse período ela participou de uma sessão na qual ingeriu uma dose completa da substância, em que sentiu os efeitos psicodélicos.
“Não é uma coisa fácil, que faria todo mês, ou algo banal, é uma experiência para a qual é preciso se preparar para viver”, comenta.
No caso da microdose de cogumelos mágicos, sem efeito alucinógeno, as formas mais comuns de utilização é o fungo desidratado ou em extrato seco em pó, em cápsulas com doses que variam entre 100mg e 200mg.
Dosagens superiores podem ser capazes de causar os efeitos psicodélicos. Existem mais de 200 espécies de cogumelos que contém psilocibina. De longe, o mais popular no Brasil é o do tipo Psilocybe cubensis.
Pesquisas mostram que os psicodélicos clássicos, como a psilocibina, atuam no cérebro, ligando-se a receptores específicos de serotonina (substância responsável pelo bem-estar, entre outras funções). Além disso, tem a experiência alucinógena, com as alterações na percepção, a chamada ‘viagem’, que também é considerada terapêutica.
No caso do CiênCéu, onde Rafaela fez a experiência, os trabalhos são supervisionados pela médica clínica geral e oftalmologista integrativa Lizie Araújo, 36, e pelo cultivador e empresário Pedro Guedes, 38, que também exerce o papel de guia psicodélico durante as sessões com alucinógenos.
A motivação para a criação do centro veio da experiência pessoal e transformadora vivida pelo fundador, Pedro Guedes, com os cogumelos mágicos, em agosto de 2021.
“Eu tinha um passado de ansiedade, déficit de atenção, pensamentos depressivos e de abuso de álcool e drogas”, conta Guedes. Segundo ele, tudo mudou após uma sessão com os cogumelos alucinógenos
Logo em seguida, ele começou a estudar o uso ritual e terapêutico de psicodélicos e aprendeu a cultivar os fungos. Este ano, criou um centro onde dirige trabalhos com os cogumelos mágicos.
“Já guiei mais de 50 sessões, sendo que 10 eram médicos, com diferentes problemas, como traumas, depressão e ansiedade.”
Guedes explica que as sessões, embora chamadas por ele de rituais, são baseadas em protocolos científicos. “Olhos vendados e fone de ouvido com música, o objetivo é focar o olhar para dentro de si, sempre priorizando a segurança e o conforto.”
Além disso, ele detalha que há duas sessões com um psicólogo, uma antes e outra depois da experiência, além do acompanhamento médico durante todo o processo. “Meu papel é o de garantir a segurança do paciente antes, durante e depois do uso da substância”, diz a médica Lizie Araújo.
Rafaela descreve sua experiência como ‘indizível e inexplicável’. Ela explica que não se libertou dos remédios alopáticos e continua o tratamento médico convencional. “Não é algo que você toma e sai curado”, explica.
Entretanto, a professora acrescenta que o tratamento evoluiu para uma perspectiva de redução da medicação. “Devagar e conscientemente, tratando dos outros aspectos de minha vida, vou caminhando em frente, agora com uma esperança bem maior do que antes”.
Pode isso?
No Brasil, duas drogas psicodélicas podem ser usadas em tratamentos médicos: a cetamina, usada como anestésico desde os anos 1960, e que agora está sendo administrada para tratar quadros graves de depressão, e a ibogaína (princípio ativo da iboga, uma raiz alucinógena africana). Não é (pelo menos ainda) o caso da psilocibina presente dos cogumelos mágicos.
A psilocibina, contida em fungos psicodélicos, faz parte da lista de substâncias proibidas no Brasil. Mas os cogumelos in natura, não. Esse detalhe tem causado uma celeuma que já resultou em prisões de cultivadores pelo país.
Ou seja, embora não exista uma proibição expressa da venda do Psilocybe cubensis, em apreensões recentes perícias técnicas da polícia identificaram a psilocibina nos fungos.
“Isso serviu para caracterizar o cogumelo seco como substratos dos quais possam ser extraídas substâncias proscritas”, observa o advogado Emílio Figueiredo, da Rede Reforma e do Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente, que atua no campo dos psicodélicos e da cannabis.
“As disposições regulatórias são nebulosas e isso significa uma grande insegurança jurídica para quem trabalha com os cogumelos que contém a psilocibina”, analisa o advogado.
Ele também critica o que considera “uma perspectiva atrasada da Lei de Drogas, que não considera a possibilidade do uso dos cogumelos como ferramenta terapêutica para promoção da saúde humana.”
Uso ritual de cogumelos alucinógenos
Por causa da ilegalidade da psilocibina, uma via alternativa que tem sido utilizada é o uso ‘ritualistico’ dos fungos psicodélicos. O argumento em geral é que a permissão para ritual e culto com a bebida psicodélica ayahuasca (usada por povos da Amazônia e grupos religiosos, como o Santo Daime) abre essa possibilidade.
É possível usar o regramento existente para o uso religioso da ayahuasca para cerimônias sem regulamentação, explica o advogado Kostantin Gerber, especialista em direitos indígenas e substâncias controladas.
Mas, o advogado destaca que a regulamentação do Conad (Conselho Nacional de Políticas de Drogas), de 2010, que autoriza o uso religioso da ayahuasca, determina que exista uma pessoa experiente na condução de cerimônias, que seja conhecedora das espécies vegetais usadas.
Livro orienta uso seguro de psicodélicos
Umas das principais referências sobre o uso terapêutico de alucinógenos, o livro “Guia do Explorador Psicodélico”, do psicólogo americano James Fadiman, finalmente ganhou este ano uma edição brasileira.
A obra, lançada pela editora Degustar, chega por aqui com mais de uma década de atraso. Publicado nos Estados Unidos em 2011, o livro se tornou um manual para quem decide navegar nas águas desconhecidas das experiências psicodélicas.
Combinando pesquisa científica, relatos pessoais e orientações práticas e objetivas, o “Guia do Explorador Psicodélico”, de Fadiman, como o título já indica, propõe orientar experimentações mais seguras.
Com décadas de experiência no campo, o autor fornece informações preciosas para ‘psiconautas’ experientes, mas também para iniciantes.
Embora um tanto desatualizado, sobretudo em relação aos avanços das pesquisas científicas, o “Guia do Explorador Psicodélico” apresenta uma base sólida, recheada de boas referências.
Fadiman esclarece os contextos históricos, culturais e científicos que envolveram essas substâncias nas últimas décadas, proporcionando aos leitores uma abordagem mais profunda de seus benefícios e riscos.
O livro também aborda a microdosagem, que envolve a ingestão de doses mínimas de psicodélicos para aumentar as habilidades cognitivas, aumentar a criatividade e aliviar diversas condições de saúde mental. Fadiman fornece instruções práticas e protocolos para fazer esse uso de uma forma mais segura.
James Fadiman é um escritor norte-americano, graduado em artes, pela Universidade de Harvard, com mestrado e doutorado em psicologia, pela Universidade de Stanford.
Cofundador do Instituto de Psicologia Transpessoal (hoje, Universidade Sofia) é uma das maiores autoridades contemporâneas sobre a pesquisa com substâncias psicodélicas, particularmente sobre seu uso na forma de microdoses.
*Texto do jornalista Carlos Minuano, que também é fundador e diretor da Psicodelicamente (www.psicodelicamente.com.br), revista digital independente de jornalismo psicodélico, apoiada pelo ICFJ (International Center for Journalists)
Com informações do site Correio.