Jolival Soares*
Segundo C. Milosz, poeta polonês, se nós quisermos penetrar a mente de nossos contemporâneos, para procurarmos saber suas crenças, valores, inclinações, etc., não vamos ter muito êxito se buscarmos nas palavras escritas, pois estas estão muito sujeitas às transmutações que a mente humana passa para adaptar-se às mutações do mundo e, nem sempre, de uma forma consciente.
Com certeza na música e nas artes teremos melhores êxitos. Quando toca no rádio do meu auto “Sentado à Beira do Caminho”, de Erasmo e Roberto Carlos, com certeza lembro-me dos dias de minha juventude em São Paulo. Começava a Jovem Guarda (década de 60). Quando olhamos um quadro de arte ou um monumento arquitetônico, eles também, pelo estilo, nos situam em uma época – década ou século. Todo século tem, portanto, a sua episteme (sua forma de produzir conhecimento).
Diz-nos grandes estudiosos que o século do apogeu da música, da arte e da ciência foi o século XVIII, pois se fazia música, arte e ciência para louvar a Deus, e havia o conceito plasmado de que Deus era o garantidor da ordem, e isto dava ao homem garantias para pesquisar e investigar, pois havia garantias de se chegar à verdade filosófica, artística ou científica. Grandes escritores místicos nos deu este século, a exemplo de Claude de Saint Martin, Emanuel Swedenborg, William Blake – este em luta contra o que considerava a trindade diabólica: Bacon, Newton e Locke.
Mas eis que chegamos ao final do século da ciência piedosa e a religião, a fé, começa a receber os golpes de uma ciência que não reconhecia “Deus”. Aliás, disse, pela boca de um de seus profetas, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que “Deus” estava morto! Veja: se eu que acreditava que seria salvo, por ter sido criado por Ele e feito à Sua imagem e semelhança e, de resto, todos nós humanos, quem então irá nos salvar? Já nos dizia o grande Ruy Barbosa, em sua célebre oração aos moços: Deus é a necessidade das necessidades. Quando retiramos a alma humana do homem, o que fica? Ele é mesmo do mesmo valor das miriápodes, das aranhas, dos artrópodes ou mesmo dos macacos?
Qual é então o significado moral ou ético dos lamentos de Jó, que reclama a Deus do seu sofrimento ou do nosso? Deveria não só reclamar pela redenção também de todos os animais, já que somos todos iguais? E nisto estou de acordo com o bioticista americano Peter Singer, em sua memorável obra: “Libertação Animal”.
A partir desta concepção filosófica de Nietzsche, de que estamos entregues à própria sorte, somos fruto de niilus, do nada, sem direção, não há propósito na nossa criação e que o homem deveria tomar em suas próprias mãos o seu destino e ser para si o seu próprio “Deus”. Não é preciso ser um exímio crítico literário, científico ou artístico, para se ver a arte, a literatura, o teatro, o cinema, produzidos pelos herdeiros de Friedrich Nietzsche – verdadeira arte de cínicos desesperados. Talvez merecedores de admiração pela sua franqueza. São eles: Gottfried Benn, Samuel Beckett, Philip Larkin.
O número é significativamente alto de pintores, escritores e poetas que se tornaram marxistas, que buscam agora um sentido para a vida, uma salvação para a humanidade, via comunismo. Paul Éluard, Pablo Neruda, Rafael Alberti, Pablo Picasso, além de muitos outros como Ferreira de Castro em Portugal e Jorge Amado no Brasil.
Todos nós sabemos hoje no que resultou esta corrente filosófica niilista, que mata Deus e Lhe substitui, no século XX, o seguinte, por duas grandes guerras mundiais, com enormes vidas humanas destruídas, tecidos sociais dos países da Europa Ocidental esfacelados, e que ainda desemboca em todas as formas de totalitarismo: na Itália com o Fascismo, na Alemanha com o Nazismo e na Espanha com a Ditadura Franquista.
Não é este genocídio humano do século XX um grande e estúpido efeito colateral desta filosofia niilista de Nietzsche e seus discípulos? O triste é ver que grandes multidões desiludidas com as promessas utópicas do comunismo voltam-se agora vorazes para o consumismo, agravando os já profundos problemas do degradado meio ambiente. Este século que vivemos tem a chance de refletir e optar por uma ética de responsabilidade (uma nova episteme) que nos leve a um futuro radioso, ou, do contrário, sem “Deus”, a um holocausto suicida, coletivo e vil. “Ad majora natus sum”. (Nascemos para coisas maiores).
*Jolival Soares é bioquímico e professor de bioética