A hospitalização em manicômio terá centralidade no Ministério da Saúde do governo Bolsonaro (PSL). A nota técnica do Ministério da Saúde, divulgada na última quarta-feira (6), reorientou as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental. Entre as alterações, também constam a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia – eletrochoques – para o Sistema Único de Saúde (SUS), internação de crianças em hospitais psiquiátricos e abstinência para o tratamento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas.
Com 32 páginas, o documento sobre as mudanças na Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas retira o protagonismo da política de redução de danos, adotada há 30 anos no país, após esforços do movimento de sanitaristas e de luta antimanicomial. Para entender os impactos dessa mudança, o site Brasil de Fato conversou com o médico psiquiatra Roberto Tykanori, liderança da Luta Antimanicomial no Brasil, ex-secretário de Saúde de Santos (SP) – primeira cidade do país a abolir o manicômio –, coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde no governo Dilma (PT), e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A nota técnica, segundo ele, é mais um ato de desrespeito à democracia: “A lei 10.216 [que estabelece a Política Nacional de Saúde Mental] e a Reforma Psiquiátrica foram lançados após 12 anos de debate no Congresso e na sociedade, e efetivados em milhares de serviços pelo Brasil. Não há governo que tenha legitimidade para mudar o rumo unilateralmente. A nota técnica é mais um ato de desrespeito à democracia na sequência do desmonte das instituições civilizatórias que assola o país. É um libelo à barbárie. A situação é caótica e o futuro imprevisível”, lamenta.
Incentivo à hospitalização
Na avaliação da psicóloga Lumena Almeida Castro Furtado, que trabalha há 30 anos com saúde pública e é professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a nota técnica consolida portarias e resoluções que vinham sendo publicadas desde o final de dezembro de 2017, de maneira menos explícita. Ou seja, altera radicalmente a proposta de cuidado psicossocial, tanto para saúde mental quanto para álcool e drogas, que vinha sendo adotada até o golpe de 2016.
“Essas portarias e resoluções e, portanto, a nota técnica que é consequência delas fere a Lei 10. 216, que fala claramente que a internação em qualquer de suas modalidades no artigo 4º só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, ressalta. Segundo Lumena, a nota incentiva a internação em hospitais psiquiátricos, como parte da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). O coordenador Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro – que assina o documento –, explicou em reportagem do jornal O Estado de S.Paulo que a ideia é orientar gestores do SUS sobre a política de saúde mental, o que passa por abordar o uso da eletroconvulsoterapia, por exemplo.
Desmonte
Lumena acrescenta que a rede substitutiva aos manicômios, que vinha sendo construída no Brasil, está sob ameaça: “O Brasil há 30 anos tem uma orientação, passando por todos os governos pós-ditadura – e tivemos governos de diferentes partidos. A Coordenação de Saúde Mental no Brasil vinha construindo uma política comprometida com esses valores que, na verdade, deram subsídio para a Lei 10. 216. Era essa orientação que, infelizmente agora por meio da nota técnica, deixa claro que não será mais chamada de rede substitutiva, porque manicômios, hospitais psiquiátricos, hospícios, é tudo a mesma coisa”.
No ano passado, houve a suspensão de centenas de contratos de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e serviços de residência terapêutica, que poderão servir meramente para moradia, segundo ela, sem foco na desospitalização. “Tínhamos milhares de pessoas que moravam há vinte anos ou mais em manicômios e vinham sendo retiradas e colocadas em liberdade, morando em Serviços Residenciais Terapêuticos. Agora, eles abriram o Serviço Residencial Terapêutico para outros tipos de pessoas”.
Internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos também são incentivadas na nota técnica – e este é outro ponto que infringe o artigo 4º da Lei 10. 216. O coordenador da pasta rebate, na reportagem do Estadão, que crianças e adolescentes podem ser internados, mas isso raramente é feito devido à carência de vagas.
“Hipocrisia”
A abstinência como única oferta terapêutica para quem é usuário de álcool e outras drogas, para Lumena, é “hipocrisia”. “Muitos estudos mostram que a política de redução de danos, a possibilidade de dispositivos que ajudam a ampliar a vida da pessoa, a ampliar o que ela pode fazer, se cuidar, ter relações efetivas de trabalho, social. Isso vai fazendo com que a pessoa diminua o tempo que ela usa drogas”, explica.
Segundo ela, existe um estímulo a comunidades terapêuticas como principal forma de tratamento a quem é usuário de álcool e outras drogas. Essas comunidades não respondem, em sua opinião, às questões do uso abusivo de drogas, mas apenas tiram o problema da vista. “Eu já atendi como gestora, como trabalhadora da saúde, pessoas que foram internadas 26 vezes em hospícios, 20 vezes em comunidades terapêuticas, uma reinternação que não cuida de nada. Só retira a pessoa da vista [da sociedade], limpa as ruas da cidade”, lamenta.
“A maioria delas foge, sai, porque não aguenta aquele tratamento colocado ali e depois voltam para a mesma situação que estavam antes. Ao contrário do Caps, que cuida da pessoa enquanto ela está vivendo a sua vida real, e vai ajudando a reorganizar a sua vida real, essas internações prolongadas em serviços fechados retiram as pessoas, mas devolvem a mesma situação”.
Lumena acrescenta ainda o relatório do Conselho Federal de Psicologia sobre as violações encontradas em inspeções nas comunidades terapêuticas, em sua maioria ligadas a instituições religiosas. Vinte e oito estabelecimentos das cinco regiões do Brasil foram vistoriados em outubro de 2017, em ação conjunta com o Ministério Público Federal (MPF) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), onde foram registradas privação de liberdade, trabalhos forçados, internação de adolescentes e castigos físicos. Ex-ministro da Saúde no governo Dilma, Alexandre Padilha foi taxativo com relação à nota técnica do Ministério da Saúde, por meio de sua conta no Instagram.
“Loucura não se prende, loucura não se tortura. A prática de liberdade é terapêutica para a loucura. Estou dizendo isso porque é muito grave, embora não seja ainda oficial, mas os rumores, as notas técnicas, as informações de dentro do Ministério do Bolsonaro de ampliar espaço para os antigos manicômios, autorizar hospitais psiquiátricos a adquirirem com recursos do Ministério da Saúde equipamentos para choque elétrico… Loucura não se prende, loucura não se tortura”, alertou o deputado federal petista, pelas redes sociais, nesta sexta-feira (8). As informações foram extraídas do site Brasil de Fato.