Um vento frio cortante corre no povoado de Ladeira Grande, zona rural de Casa Nova, região do Vale São – Franciscano da Bahia, em uma manhã do início de agosto. Homens vestem os seus raros agasalhos, mulheres enrolam lenços na cabeça e famílias inteiras sobem na carroceria de um caminhão. Juntos, os camponeses vão ao cemitério do povoado, onde rezam para uma vizinha que havia morrido sete dias antes.
É assim desde o tempo dos seus pais, avós e bisavós dos moradores locais, que há gerações ocupam a mesma porção da terra arenosa e formam comunidades de fundo e fecho de pasto. Este sentimento de comunidade, contudo, corre o risco de se dissolver frente à possibilidade de despejo de cerca de mil famílias que vivem na zona rural do município baiano, a cerca de 570 km de Salvador.
A valorização das terras da região, com a chegada de usinas eólicas e a perspectiva de novos empreendimentos, provocou uma disputa pela posse de uma área que pode chegar a 600 mil hectares, o equivalente a cerca de seis vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Uma das maiores áreas é reivindicada pela empresa mineira Bioma Terra Nova Participações, que desde o ano passado iniciou uma ofensiva para cercar terrenos e tomar posse de terras na região.
Certidões e contratos aos quais a reportagem do Jornal Folha de São Paulo teve acesso apontam que terras foram incorporadas ao patrimônio da Cia Agropecuária Amorim Passos, empresa com sede em Casa Nova, antes de serem vendidas para a Bioma Terra Nova. A reportagem não conseguiu contato com as duas empresas. A Prefeitura de Casa Nova alega que o setor de tributos identificou uma quantidade fora do comum de transferências de terras na região. A troca da posse, diz o prefeito, seria uma forma de ‘esquentar’ documentos falsos.
“Quando fomos pesquisar que áreas eram essas, percebemos que eram regiões já ocupadas por famílias. São terras que passaram de pai para filho. Não temos dúvida de que se trata de uma ação de grileiros”, afirma o prefeito Wilker Torres (PSB). Um mapeamento das terras reivindicadas pelas empresas foi feito pela Comissão Pastoral da Terra com base em dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O caso é investigado pelo Ministério Público do Estado da Bahia, que instaurou procedimento para apurar possíveis crimes de falsificação ideológica e formação de quadrilha. A apuração corre em sigilo.
A Coordenação de Desenvolvimento Agrário, órgão do Governo da Bahia, informou que está fazendo avaliações técnicas e cartográficas para apurar se há inconsistências ou irregularidades no histórico das propriedades. O secretário estadual de Desenvolvimento Rural, Josias Gomes, afirma que o governo intensificou a regularização fundiária nas regiões com potencial eólico e que fará uma varredura completa na documentação das terras na zona rural de Casa Nova. “Temos certeza de que vamos encontrar muitas situações de terras devolutas. São áreas pouco propícias para a agricultura”, afirma o secretário.
Apreensão
Nas comunidades de fundo de pasto, o clima é de apreensão entre os agricultores. Desde o fim de 2018, empresas começaram a mapear terrenos com o uso de drones e enviar trabalhadores para desmatar e cercar terras dentro do município. Foi o que aconteceu no povoado de Ladeira Grande, a cerca de 50 km da zona urbana de Casa Nova, onde centenas de famílias vivem da criação de caprinos e ovinos, além da produção de mel.
O agricultor Alonso Dias Braga, 68 anos, que nasceu em Ladeira Grande, afirma que sua família vive nas mesmas terras há mais de cem anos. Ele diz que forasteiros começaram a desmatar e marcar terrenos próximos a sua casa no início deste ano, mas a comunidade se uniu para arrancar os piquetes instalados na região. “Por enquanto, a gente está aqui resistindo. Mas só Deus sabe o dia de amanhã”, contou Braga, que vive no povoado com a mulher e seis filhos.
Além dos desalojados com a construção da barragem de Sobradinho, a zona rural de Casa Nova possui histórico de décadas de disputas territoriais. Em 2008, centenas de famílias do povoado Areia Grande ficaram na iminência de serem desalojadas depois de a Justiça dar ganho de causa pela posse das terras para uma empresa da região. Na época, prepostos entraram nas comunidades e destruíram casas, chiqueiros, currais e roçados. Um ano depois, um dos líderes da comunidade, Zé de Antero, foi assassinado em um crime que ficou sem solução.
Coordenadora da Comissão Pastoral da Terra na região, Marina Rocha classifica o cenário de disputas por terras como um problema histórico e grave em Casa Nova. E diz esperar que o poder público regularize as propriedades para garantir a segurança e estabilidade para os agricultores. “São famílias que vivem secularmente na região, criando e produzido. Mesmo que não tenham documentos, eles têm a posse da terra. Retirá-las de suas casas é um crime e uma ameaça ao jeito de viver destas populações”, afirma. As informações são da Folha de S. Paulo.