O escritor Itamar Vieira Junior pode estar sendo perguntado se se inspirou em Bacurau, longa-metragem que se multiplicou pelo Brasil, desde que ele lançou ‘Torto Arado’, em agosto, mesmo mês de estreia do filme. O questionamento brota, sobretudo, por coincidências entre o filme e o primeiro romance do autor, publicado no Brasil pela editora Todavia. Filme e livro foram feitos por nordestinos e falam de cidadezinhas imaginárias nos rincões da região. Tanto um quanto outro escancaram que o caminho para superar as mazelas sociais pode ser longo e tortuoso e criam narrativas de resistência contra o poder constituído.
Além disso, foram premiados fora do país: ‘Bacurau’ venceu o prêmio do júri no Festival de Cannes, enquanto ‘Torto Arado’ ganhou o prêmio português Leya em 2018. “O artista faz um retrato do seu tempo. Talvez alguma coisa estivesse pairando difusa e foi captada, o que pode explicar essas coincidências entre filmes, livros, peças recentes”, acredita Itamar Vieira Junior. Aos 40 anos, o escritor nascido em Salvador participou na última quinta-feira (24) da programação oficial da Flica, a Festa Literária Internacional de Cachoeira, no Recôncavo Baiano.
Dizer que ‘Torto Arado é um ‘Bacurau’ em palavras escritas é reduzir a obra de Vieira Junior. O romance se estrutura na relação entre duas irmãs, Bibiana e Belonísia, moradoras de uma fazenda no interior da Bahia que, pelas características geográficas e culturais, está localizada na região da Chapada Diamantina. Filhas de um líder religioso do jarê —sistema de crenças que mistura catolicismo rural, traços da tradição indígena, pontos de espiritismo e elementos das religiões de matriz africana—, as duas se tornam quase a mesma pessoa após um acidente narrado no primeiro capítulo.
Após acharem um punhal na mala da avó, uma delas tem a língua cortada pela lâmina, o que faz com que a outra precise aprender cada gesto da irmã para transformar suas vontades e inquietações em palavras. A ausência da língua e a falta de diálogos longos durante quase todo o romance foram as saídas narrativas encontradas pelo autor não apenas para compôr a geografia do lugar e uma certa aridez social, mas para pontuar as relações de poder entre as personagens.
“É uma metáfora sobre a situação das populações que vivem em regiões do país como se ainda estivessem no século 18 ou 19. A escravidão não acabou no Brasil em 1888 —ela se perpetua até hoje em sistemas de servidão e em brigas por direito à terra”, diz. Com personagens descendentes de escravos, “Torto Arado” deixa mais perguntas do que respostas. De quem, de fato, é a terra onde vivem as comunidades tradicionais? Como manter essas tradições? “Embora seja ficção, queria mostrar que muita gente ainda luta por terra. Não por acaso morrem lideranças no campo todas as semanas, o que faz do Brasil um dos países mais violentos em relação às questões agrárias”, completa.
As palavras não são apenas de um escritor, mas de um servidor público que segue trabalhando com questões relativas à reforma agrária. Geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar Vieira Junior se divide entre a nova vida de autor e as tarefas de funcionário público. As palavras vêm também em uma época em que o presidente do Brasil já ofendeu quilombolas e afirma que não promoverá novas demarcações de terras indígenas. “Quando comecei a escrever, nunca imaginaria que estaríamos nessa situação”, diz Vieira Junior. “Mas o romance vem em momento oportuno, de opressão de direitos”. Jornal da Chapada com informações de Folha de S. Paulo.