Manuscrito 512, é o nome do documento, datado de 1754, período do Brasil colonial, que está arquivado na Biblioteca Nacional e colocou a região da Chapada Diamantina como o possível local do maior mito da arqueologia brasileira. De autor desconhecido, o texto é uma carta com um destinatário também não identificado, e relata uma expedição bandeirante ao interior da Bahia, onde teria sido encontrada uma cidade perdida. O texto relata que o grupo chegou a uma região “de montes tão elevados, que parecia que chegavam à região etérea”. Os bandeirantes acreditavam que havia cristal no topo das montanhas, dado o reflexo do Sol, dos quais “ninguém podia afastar os olhos”.
De acordo com a carta, um dos membros do grupo avistou um “veado branco” e tentou alcançá-lo. Nisto, avistou um caminho por dentro da montanha, por onde a expedição avançou. Chegando ao topo, avistaram um grande povoado abandonado e decidiram explorar o local. Uma trilha de pedras levava à cidade que, segundo o texto, tinha em sua entrada “três arcos de grande altura” e uma rua principal, com habitações construídas. “Faz uma rua da largura dos três arcos, com casas de sobrados de uma, e outra parte, com as fronteiras de pedra lavrada, e já denegrida”, aponta o autor desconhecido em trecho do Manuscrito 512, adaptado para o português contemporâneo.
Apesar das casas construídas, os bandeirantes não teriam encontrado nenhum vestígio humano. Além das moradias, o texto relata que foram descobertas uma praça com “uma coluna de pedra preta, de grandeza extraordinária, e sobre ela uma estátua de um homem ordinário, com uma mão na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando o dedo index ao Pólo do Norte”. Ao redor do terreno, estariam dois prédios grandes: um templo com parte do frontispício ainda conservado, e figuras em relevo como corvos e cruzes.
O outro prédio, em ruínas, infestado de morcegos, teria uma construção que o autor do texto acreditava ser “a casa principal de algum senhor da terra”. Dias depois, o grupo relatou ter encontrado uma cachoeira e lá uma moeda de ouro, que trazia cunhada a figura de um homem de joelhos, um arco, uma coroa e uma flecha. O autor do texto disse acreditar que outros tesouros também estariam presentes na cidade, mas que mais homens seriam necessários para acessá-los.
A descoberta do documento
O Manuscrito 512 foi encontrado por acaso em 1839, esquecido em meio à Biblioteca da Corte (como era chamada a Biblioteca Nacional). A íntegra do texto foi publicada no mesmo ano, na então recém-lançada revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Anexado à publicação do conteúdo do documento, o cônego Januário da Cunha Barbosa, figura influente da política do Primeiro Reinado, escreveu um texto no qual esboçava uma teoria de que o relato da expedição estava de alguma forma relacionado à história de Roberto Dias, homem preso pela corte portuguesa por se negar a revelar a localização de supostas minas de metais preciosos na Bahia.
A ligação entre os assuntos nunca foi comprovada, mas segundo um artigo de 2002, de Johni Langer, doutor em história pela Universidade Federal do Paraná, publicado pela Revista Brasileira de História, o documento se tornou assunto em rodas de conversa da época e atraiu a atenção de figuras como Dom Pedro II e os intelectuais Ignácio Accioli Silva e Arthur Moncorvo.
As primeiras buscas
De acordo com a pesquisa de Langer, Accioli Silva e Moncorvo estudaram o que se sabia sobre as supostas ruínas e enviaram à revista do IHGB um relatório onde diziam acreditar que o conteúdo do documento não era fantasioso. Eles alegaram que descrições semelhantes haviam sido feitas por moradores da Bahia. O IHGB então começou a demonstrar interesse em encontrar a cidade perdida e nomeou, em 1840, o cônego Benigno José de Carvalho e Cunha como líder de buscas.
Carvalho e Cunha foi a Salvador e entrevistou viajantes que tinham ido ao interior da Bahia para tentar descobrir a localização da cidade. Suas pesquisas apontaram que o local poderia estar em algum lugar da Serra do Sincorá, na Chapada Diamantina. Em dezembro de 1841, Carvalho e Cunha partiu em uma expedição à região. Em 1844, enviou ao instituto as primeiras supostas provas da existência da cidade perdida. Entre elas estava o relato de um escravo que dizia ter vivido próximo às ruínas quando jovem.
Em 1845, chegou a enviar uma carta afirmando explicitamente que a cidade havia sido encontrada. As cartas, no entanto, não foram aceitas pelo Instituto, que passou a questionar a ideia da existência da cidade perdida. Carvalho e Cunha permaneceu na Serra do Sincorá até 1848. Retornou para Salvador um ano depois e morreu meses após sua chegada.
As (quase) expedições
Em 1848, o major Manoel Rodrigues de Oliveira enviou uma carta para a corte imperial, argumentando que ainda seria possível encontrar a cidade perdida. A ideia veio a partir da afirmação de que as ruínas não estariam na Serra do Sincorá, e sim numa região no centro-sul do estado, próxima aos Rios Paraguaçu e Una. Na época, no entanto, o império já não acreditava mais na existência da cidade e havia abandonado todos os financiamentos de buscas oficiais.
Já no século 20, em 1913, uma expedição para procurar a suposta cidade perdida da Bahia quase aconteceu, encabeçada pelo explorador britânico Percy Harrison Fawcett. Ele já estava no Brasil em uma missão similar, procurando pela “Cidade Perdida de Z”, que ficaria no Mato Grosso do Sul. Fawcett iria para a Bahia depois de encontrar Z, mas seus planos foram frustrados pelo começo da Primeira Guerra Mundial, que fez com que o arqueólogo voltasse para a Europa.
Ele retornou para o Brasil em 1925, acompanhado de seu filho, Jack, e de um amigo, na tentativa de retomar as duas buscas. Mas a expedição teve um fim abrupto quando os três desapareceram na região do Rio Xingu. Uma descrição aprofundada das missões de Fawcett foi feita nos livros ‘Exploration Fawcett’, escrito por John Kennett em 1953, e ‘Z: A Cidade Perdida’, de David Grann, de 2009.
Por que se criou o mito
Em seu artigo, o historiador Johni Langer argumenta que algumas das descrições feitas pelo autor da carta que descreve a suposta cidade na Bahia remetem a um padrão mediterrâneo clássico e, por isso, imaginário. Langer levanta a ideia de que o mito da cidade perdida surgiu no contexto das grandes descobertas arqueológicas clássicas que estavam em efervescência na Europa, incluindo as escavações que descobriram na Itália as cidades de Herculano e Pompéia, destruídas pelo vulcão Vesúvio no ano 79 depois de Cristo. Para ele, o manuscrito pode ter sido escrito por João Guimarães, “um bandeirante ávido por ouro”, e Martinho Proença, “um acadêmico interessado por arqueologia”.
Apesar da hipótese, a real autoria do documento nunca foi descoberta. O historiador acredita que as incessantes buscas feitas na década de 1840 eram uma tentativa do Império de estabelecer uma relação direta entre a história do Brasil e a história da Europa – algo que faria bem à imagem do país. Para Langer, a cidade perdida não passa de uma “miragem”, um mito não muito diferente das histórias de Atlântida e Eldorado. Ele conclui que apesar da fábula, a ideia das ruínas no interior da Bahia foi parte importante do imaginário popular do Brasil no século 19. Com informações do Nexo Jornal.