A professora de Filosofia, Maria Isabel Gonçalves, percebendo que talvez a maioria dos estudantes do Colégio Estadual Ruy Barbosa, em Boninal, na Chapada Diamantina, nunca tenham sentido a necessidade da disciplina de filosofia, criou um projeto intitulado ‘As filosofias de minha vó: Poetizando memórias para afirmar direitos’, no qual passou a levar para o ambiente de sala de aula algo que os livros não conseguiam contemplar, ou seja, os saberes mais velhos – ou das iaiás, como chamam as avós nessa região, visando um resgate de memórias e elevação da autoestima de estudantes da comunidade rural.
Em entrevista ao jornal A Tarde, ela contou que a ideia do projeto surgiu quando ela estava na especialização que fez pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e estava fora de aula no período. “Esse foi o meu primeiro contato com a filosofia africana, com ética Ubuntu [filosofia africana que fala da importância das alianças e do relacionamento das pessoas]. No curso, a gente tinha sempre que pensar em como colocar aqueles conhecimentos em prática na sala de aula. Quando pensava em desenhar aquele plano de aula, pensava na comunidade dos meus alunos, por meio de conversas com os avós e a comunidade, entendendo que os avós tinham lugar de sabedoria e em cada tema a gente podia encontrar um conhecimento, uma troca: os estudantes trazendo a teoria dos grandes filósofos conversando com os avós. E quando conheci a ética Ubuntu, tudo casou perfeitamente”, contou.
O projeto ganhou em 2020 o Prêmio Educador Nota 10, considerado o mais importante da educação básica brasileira. A professora que viveu a infância em Duas Passagens, uma comunidade entre Boninal e Seabra, na Chapada Diamantina, conta que até os seus 13 anos, que ela ficou lá, não havia energia elétrica e na escola não havia divisão de séries, bem como não tinha biblioteca.
“Era uma infância muito no mato, e isso era muito forte para mim. E houve todo o encontro com as palavras, desde a minha infância. Ter virado professora e essa coisa que falo hoje, que eu luto com a palavra, surgiu ouvindo histórias. As nossas noites eram embaladas pelas histórias da minha mãe e eram histórias da minha família, ela sempre contando sobre as iaiás dela. Ela contava como se fosse um cenário perfeito, fantástico, e era mágico ouvir tudo aquilo. Hoje estou no resgate dessas palavras para que os estudantes possam continuar essas narrativas”, afirmou.
Maria Isabel conta que o processo de decisão de ministrar aulas veio quando ela obteve uma professora “que me lembro de ver em uma posição de destaque e com esse domínio de palavras. Eu sempre fui encantada por gente que fala, então, naquele momento pensei: quero ser professora”, ressaltou. A partir disso, ela se mudou para uma comunidade rural mais próxima de Seabra, estudou nessa cidade e mudou o seu pensamento, querendo ser cantora e escritora.
“Ser professora foi um caminho que foi um presente que até então eu não tinha entendido, porque a trilha de ser professor é muito difícil, muito árdua. Foi por uma necessidade, porque a primeira faculdade que entrei foi jornalismo, por gostar de falar, disseram que tinha a ver comigo e fui fazer em Salvador, mas era muito incerto, eu não tinha onde ficar, e me inscrevi em um curso de letras aqui. Voltei para fazer licenciatura em letras, mesmo não querendo ser professora, mas era a possibilidade que a gente tinha aqui. Encantada com a literatura, achava que letras me trazia a possibilidade de ser escritora. Mas aí eu precisava trabalhar e a família começou a cobrar isso. Então, fiz um concurso e fui dar aula. Lembro que queria desistir, foi muito chocante para mim. As condições que me foram oferecidas, me deram várias disciplinas, eu era contratada do Regime Especial de Direito Administrativo (Reda), foi muito sofrido esse meu início como professora, mas eu me encantei ali. Em ver o aluno criar, brotar ideias. Sou uma professora que para ver o aprendizado, ele tem que ser materializado em uma narrativa. Eu me realizo ao ler textos produzidos pelos meus alunos”, destacou Maria.
Ainda durante a entrevista, a professora de filosofia afirma que muitos professores e doutores ressaltaram a importância do projeto e que as pessoas que entram em contato com ela também querem levar essa ideia também para o seu campo de atuação. “Uma educação feita por nós, que traz outras vozes de conhecimento. Se é filosofia, vamos buscar a filosofia do nosso povo; se é história, vamos buscar a nossa história. Nós também somos sujeitos de conhecimento e o nosso aluno também tem uma potência de conhecimento. (…) A filosofia busca pelos mistérios. Eu falo para os meus alunos que as histórias e os mistérios se escondem nas palavras, mistérios de povos que habitaram esse lugar, e que a gente encontra um resquício nas palavras”, comentou.
Para Maria, há diversas possibilidades de conhecimento, mas os alunos de Boninal não são convidados a ver isso. “O aluno é convidado a negar, a esquecer disso. Vou estudar conteúdos para passar no vestibular. A identidade, questões centrais para formação são colocadas de lado, é uma educação desterritorializada. A gente cresce aqui olhando para fora, o jeito de falar certo é o de fora, o jeito bom de viver é o de fora, na cidade, com carro. A maior parte dos alunos das comunidades rurais de Boninal termina o ensino médio e vai para São Paulo. Agora, na pandemia, eles já estão lá, mesmo sem ter terminado o ensino médio, trabalhando. Noventa por cento dos estudantes das comunidades rurais de Boninal não vão para as universidades. Desde 2019, só três alunas minhas foram para a universidade. Eles vão para São Paulo trabalhar de empregada doméstica, servente de pedreiro, faxineiro, é muito frequente isso. E agora que a gente retornou, eu pedi para eles escreverem os sonhos para o seu projeto de vida e como a comunidade deles entravam nesse sonho. Me chamou muito a atenção uma das alunas da comunidade rural que colocou como sonho ir para São Paulo conseguir um emprego de babá e ajudar a família. Ela coloca isso como um sonho, algo que normalmente é grandioso”, enfatizou.
Maria pondera que ao estudante da comunidade rural é muito limitada. “É uma educação que não empodera. Estou nesse coletivo para lutar por esse direito de uma educação por inteiro, uma educação do pertencimento. Tenho direito de ter acesso a uma educação de qualidade, que me contemple, que me coloque dentro do processo, que traga as questões que são importantes para mim. É uma educação pensada para eles”, disse.
Aulas na pandemia
A professora destaca a disparidade social dos alunos de comunidade rural e que durante esta pandemia de Covid-19 ficou ainda mais perceptível. “Ficou definido aqui para nós usar o Google Meet, o aplicativo para aula virtual mais acessível, mas o celular de uma grande parte dos estudantes não suporta o aplicativo. Outros alunos não têm rede de internet. Nas aulas, a gente consegue uma parte da turma, quase metade da turma está no trabalho, muitos desses alunos da turma estão em São Paulo trabalhando”.
Segundo ela, os professores não foram preparados para o retorno online e também possuem complicações com esse ambiente remoto. “Para a aula ser interessante e dinâmica precisa de um equipamento bom e nem todo professor tem esse equipamento, além de aprender como ser dinâmico e proporcionar o aprendizado dessa forma. É totalmente desafiador, a gente está se reinventando”, concluiu.
Jornal da Chapada
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