Por Luiz Carlos Suíca*
A sociedade soteropolitana aguarda ansiosa a finalização do inquérito policial que apura as mortes de Yan e Bruno, tio e sobrinho, que foram assassinados no final do mês de abril deste ano. As últimas imagens que se possui dos dois jovens negros com vida são das câmeras de vigilância interna do supermercado Atakadão Atakarejo, localizado no bairro do Nordeste de Amaralina, em Salvador. Segundo relatos dos seguranças e outros funcionários da rede, ambos foram pegos furtando um pedaço de carne no interior da loja e, por isso, foram entregues aos traficantes de drogas da região. O desfecho trágico dessa história foi quando os corpos foram encontrados, sem vida, dentro de carro no bairro da Polêmica.
O caso é investigado e a Polícia Civil vem cumprindo seu papel. Esperamos que, em breve, sejam apresentadas as pessoas que executaram o crime. No entanto, independente do resultado da investigação criminal, temos a certeza de que foram os prepostos da rede Atakadão que entregaram os jovens àqueles que os torturaram e ceifaram suas vidas. Neste sentido, cabe à prefeitura de Salvador fazer cumprir o Estatuto da Igualdade Racial de Combate à Intolerância Religiosa, Lei 9.451/2019, que está em vigor há quase dois anos.
São diversos os trechos da referida lei que obrigam a prefeitura a adotar alguma medida mais enérgica diante desse caso, a exemplo do Artigo 62, que determina que independente da ação dos outros poderes, a prefeitura penalizará todo estabelecimento comercial que, por atos de seus proprietários ou prepostos, discriminem a pessoa em razão de sua cor ou etnia. Sendo assim, não pode a prefeitura se eximir de cumprir a norma, especialmente diante da gravidade do caso.
Neste mesmo sentido, a Câmara de Vereadores aprovou e a prefeitura sancionou a Lei 9498/2019, intitulada ‘Lei Teu Nascimento’. Com a criação dessa norma, o município definiu que caracteriza infração administrativa a prática de ato discriminatório contra pessoas em razão de sua orientação sexual, realizada por pessoas jurídicas de direito privado estabelecidas em Salvador. Sendo assim, quem incorrer na prática descrita sofrerá as punições previstas em lei.
Diferente do Estatuto da Igualdade Racial, a ‘Lei Teu Nascimento’ já possui regulamentação, está definida por meio do Decreto 92.959/2020. O ato do Poder Executivo define a forma de apuração e a aplicação das penalidades cabíveis ao estabelecimento comercial que praticarem esse tipo de infração administrativa.
Como dito anteriormente, a inércia do Poder Executivo em regulamentar o estatuto não pode ser motivo para justificar a impunidade. É importante assinalar que, o Supremo Tribunal Federal (STF) em julgado recente, equiparou o crime de homofobia ao crime de racismo. Dessa forma, deve-se aplicar os procedimentos e penalidades previstas na lei que regula o crime de racismo nos casos em que fique comprovado delitos motivados por ódios aos homossexuais, enquanto não se produz norma específica.
E se a Corte Maior desse país, a guardiã da Constituição Federal, entendeu que poderia utilizar o regulamento do crime de racismo para punir quem cometer o crime de homofobia, o contrário também é legítimo. Em outras palavras, na ausência de regulamento para punir estabelecimentos comerciais que pratiquem atos de racismo, deve o Poder Executivo lançar mão do decreto que estabelece os critérios para punir administrativamente as empresas que discriminam pessoas, devido a sua orientação sexual, para punir os estabelecimentos que discriminem por critérios de raça ou cor.
Convém ressaltar que o órgão competente para presidir o processo administrativo previsto no Decreto 92.959/2020 é a Secretaria Municipal de Reparação, espaço criado com responsabilidade de articular, junto às instituições governamentais e não governamentais, as políticas públicas de promoção da equidade racial, a inclusão social dos afrodescendentes e a valorização da diversidade. Dessa forma, é a pasta com competência e experiência para analisar casos de racismo.
Por fim, as penalidades atribuídas aos estabelecimentos devem ser proporcionais à gravidade dos atos por eles praticados, no caso em questão, que teve como consequência a morte de dois jovens, não parece haver punição mais apropriada do que a cassação do alvará de funcionamento. Qualquer decisão diferente dessa, após finalizado o processo administrativo, seria uma declaração do Poder Público Municipal, autorizando matar pessoas negras acusadas de cometer furtos em estabelecimentos comerciais de Salvador.
*Luiz Carlos Suíca é historiador, vereador do PT e presidente da Comissão de Reparação da Câmara de Salvador.