São 7h no bairro Engenho Velho da Federação, em Salvador. Escondida pelos fios, ladeada por uma pilha de lixo depositado na calçada, a igreja da Paróquia Santa Cruz quase passa despercebida no vaivém de carros na ladeira da avenida Apolinário Santana. No interior do templo, um grupo de pouco mais de 50 fiéis se reúne. São quase todos negros — em contraste com as imagens das esculturas do altar e dos painéis que decoram uma das paredes, santidades brancas, de cabelos castanhos e olhos claros.
Duas horas depois, estamos no bairro Federação. Apartada do burburinho da avenida Cardeal da Silva por um recuo de 100 metros e por um corredor de árvores frondosas está a Capela Nossa Senhora da Piedade. Colossal para uma capela, foi construída em 1874 para ser a igreja oficial do Cemitério do Campo Santo. A lembrança dos mortos está por toda parte — nos jazigos construídos em seu entorno e nas pedras do piso que estampam os nomes daqueles que tiveram seus restos mortais ali sepultados. É para celebrar a memória de seus antepassados que os pouco mais de 40 fiéis, brancos em sua maioria, estão ali presentes.
Uma vez por semana, o padre Lázaro Silva Muniz, 55, sai de uma região com os piores índices de homicídios de Salvador e vai a outra, a 3 km de distância, que abriga uma classe média alta e o maior campus da UFBA. O papel de mediação entre as duas faces da mesma cidade foi iniciado há menos de 10 anos. Em 2012, ao assumir a paróquia da Catedral Basílica de Salvador, Lázaro herdou, por tabela, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Centro Histórico. Ali, acolheu como nenhum de seus antecessores os fiéis de dupla pertença — adeptos de mais de uma religião. Chamou os representantes dos terreiros para um encontro. Queria entender por que encomendavam tantas missas no Rosário.
Nunca houve uma proibição formal dentro do Rosário contra isso, tampouco abertura para um culto tão cantado, dançado e com tanta gente vestida com os torsos e batas brancas quanto naquele momento. A música, entoada com atabaques e agogôs, a oferenda cantada ao ritmo dos afoxés, a decoração da igreja com mais folhas, sementes e água e menos flores dão o toque de africanidade à missa do Rosário.
“Muitas vezes eu saí da homilia de padre Lázaro chorando de emoção. Ele nos trata como gente. Mostrou que irmandade e acolhimento existem de verdade”, contou ao TAB a socióloga Sandra Maria Bispo, 67, ex-priora da Irmandade dos Homens Pretos e yakekere do terreiro Casa de Oxumarê. “Eu tinha muitas diferenças para com a Igreja Católica. O exemplo de Padre Lázaro serviu para que eu me reconciliasse com ela”, diz.
Para o religioso, o sincretismo não é mais necessário, mas ainda merece respeito. “Essas pessoas foram criadas na crença de que para ser boa filha de santo, para viver bem no seu ilê, no seu axé, ela precisa visitar sete igrejas dedicadas a Nossa Senhora. A gente vai cortar isso? Vai matar e vai decepar essa tradição?”, questiona. “Isso seria injusto, desumano até. Precisamos reconhecer e respeitar o sincretismo como um movimento de resistência”, diz o sacerdote.
“A disposição ao diálogo inter-religioso foi onde Lázaro mais se destacou. Entre todos os padres que passaram pelo Rosário, foi aquele que mais se permitiu essa doação e essa entrega ao verdadeiro Cristo”, opina William Justo, 28, primeiro secretário da Irmandade dos Homens Pretos.
O padre é um dos personagens da série Preto à Porter do UOL, que destaca a participação de personalidades negras na luta contra as desigualdades provocadas pelo racismo. Assista ao episódio aqui.
Mudança de hábito
O anúncio da transferência de padre Lázaro do Rosário dos Pretos, em dezembro de 2018, teve um impacto inédito. Os fiéis enviaram um ofício à Arquidiocese de Salvador pedindo a permanência do pároco. Além disso, criaram uma campanha com a hashtag #ficapadrelazaro, que rapidamente viralizou nas redes sociais, ganhou apoio de artistas e intelectuais e repercussão na mídia. De nada adiantou. Lázaro deixou o Rosário dos Pretos em 21 de fevereiro de 2019, com uma missa campal celebrada no Pelourinho, na presença de irmãos católicos, de dupla pertença e lideranças de outras religiões.
Oficialmente, a igreja promove um rodízio entre os padres. Não há um tempo determinado para isso, mas a tradição é de que a dança das cadeiras paroquiais ocorra no período entre seis e nove anos. padre Lázaro ficou sete anos no Rosário dos Pretos. Tem gente que até hoje não se conforma com sua transferência.”Sincera e honestamente, eu acho que foi mais por despeito, porque nunca se viu uma igreja tão mesclada e tão lotada como era com ele na terça-feira da benção”, opina Sandra Bispo.
De fato, a popularidade de Lázaro junto aos fiéis do Rosário dos Pretos cresceu na mesma proporção em que as denúncias anônimas chegavam ao arcebispo primaz de então, D. Murilo Krueger. “Criticavam porque tinha muita dança. Criticavam a devoção dos pães na terça-feira da benção. Mas o que há de pecado nisso? Não tinha nada de objetivo”, diz o religioso.
Quando toca no assunto, padre Lázaro não muda o tom sereno de voz, mas a fala ganha contundência. Até hoje o religioso não sabe quem são seus detratores, mas conhece muito bem suas motivações. “A intolerância religiosa é um processo intimamente ligado às religiões de matriz africana, de desrespeito à negritude. Existem brigas internas das outras religiões cristãs, mas sempre na perspectiva de corrigir, estruturar, consertar. Com o candomblé, é diferente: querem exterminá-lo”, diz ao TAB.
Caruru
Soteropolitano, Lázaro nasceu e foi criado com nove irmãos às margens da avenida Vasco da Gama, bem próxima à sua paróquia atual. O pai, Osvaldo, era servidor público; a mãe, Maria de Lurdes, católica e baiana de acarajé.
A pior das lembranças da infância pobre foi aos 11 anos, quando a família ficou alojada no ginásio Antonio Balbino, anexo à antiga Fonte Nova, depois que a casa foi inundada em uma enchente; as melhores envolvem todos os anos em que era escolhido como um dos sete meninos para comer o Caruru completo — um banquete composto por sete pratos oferecidos aos orixás que, antes de ser compartilhado, precisa ser servido a sete crianças, representando os ibejis, gêmeos sincretizados com os santos católicos Cosme e Damião.
Foi nesse ambiente carente em recursos financeiros, mas rico em diversidade cultural e religiosa que o sacerdote cresceu. Ingressou no seminário em 1987, incentivado por um amigo. Na época, achou que não duraria nem um mês, mas quem acabou saindo mais cedo foi o colega, que lhe pediu para fazer seu casamento assim que se ordenasse, o que acabou acontecendo 10 anos depois. Passou por várias paróquias, mas foi somente quando assumiu o Rosário dos Pretos que se transformou em uma referência de diálogo inter-religioso.
“Na condição de porta-voz de grupos religiosos discriminados e mal entendidos, padre Lázaro foi alçado à condição de representante da face de um Jesus que é a expressão do povo negro, uma representatividade não só política como social”, define a historiadora Solange Palazzi, 54, coordenadora da Rede Nacional das Irmandades Negras e da Pastoral Afro de Ouro Preto (MG). “Ele tem essa característica bonita de ser sereno até no momento mais complicado. Saber que ele é uma pessoa amorosa, acolhedora e que ao mesmo tempo faz um movimento sério e incisivo é algo que nos encanta e que faz dele uma liderança muito boa pra congregar”, resume.
Sem erguer a voz, Lázaro segue sua peregrinação entre os contrários, os que não se cruzam, como uma espécie de missionário da tolerância. A redação é do TAB UOL.