Um processo por danos morais movido desde 2014 por Gilmar Mendes contra o jornalista Rubens Valente resultou na fixação do pagamento de uma indenização ao ministro do Supremo Tribunal Federal que contraria precedente da própria corte. Gilmar ingressou na Justiça de Brasília em decorrência do livro “Operação Banqueiro”, de autoria do repórter, sobre os bastidores da investigação que mirou negócios do banqueiro Daniel Dantas.
Absolvido em primeira instância, ocasião em que o mérito da ação foi julgado, Rubens Valente acabou sendo condenado nas instâncias superiores a indenizar Gilmar, e o caso chegou recentemente à fase de execução. Valente pagou R$ 143 mil ao ministro em fevereiro. E terá de honrar com mais de R$ 175 mil caso a Geração Editorial, responsável pela obra, não quite sua parte.
O próprio Supremo, porém, diz que nos casos de responsabilidade civil por danos morais e materiais deve ser observada “cláusula de modicidade” ao se fixar indenização quando o suposto ofendido na honra e imagem for agente público. A corte, entretanto, confirmou a decisão favorável a Gilmar, um dos 11 ministros que compõem o colegiado.
Procurado, Gilmar se negou a responder às perguntas enviadas, entre elas a de quais são os supostos erros que o livro conteria e que justificariam um ressarcimento a ele de mais de R$ 300 mil, o porquê de ele ter se recusado reiteradamente a dar entrevistas ao repórter durante a produção do livro e qual a avaliação que ele faz de a decisão final a seu favor ter sido tomada por colegas do STF.
Em 2021, o tribunal analisou o caso e, confirmando decisão de instância anterior, ordenou que eventual reedição da obra deve contemplar em suas páginas, como direito de resposta, a sentença e o pedido inicial do ministro que motivou o processo. “Essa decisão procura interditar o debate, impedir a livre circulação de ideias e narrativas de determinados fatos públicos”, afirmou Valente à reportagem.
“O que o Supremo pretende com essa decisão é editar meu livro, interferir na minha narrativa, do que eu compreendo dos fatos. Não vou aceitar. Nenhum jornalista deve aceitar. É inédito”. “Até que ponto eu devo deixar de narrar fatos para que não se atinja a honra de uma pessoa? É isso que o Judiciário está propondo no meu caso, que fatos reais e verificáveis não devem ser narrados”.
O jornalista afirmou que não cederá a essa exigência imposta pela Justiça e não reeditará o livro, o que significaria enxertar mais de 200 páginas à obra. “Na prática, o tribunal determinou o banimento do meu livro do mercado editorial brasileiro”, disse. Questionada, a Geração Editorial afirmou que não comentaria detalhes. “O caso já foi julgado. É uma decisão final do Supremo, que respeito e cumpro. Prefiro não comentar”, disse Luiz Fernando Emediato, publisher da editora.
Amigos e colegas de profissão do jornalista se mobilizaram e lançaram uma vaquinha na internet para levantar os recursos necessários para o pagamento de ao menos o valor remanescente —um balanço da manhã desta quarta-feira (11) indicava que a arrecadação já estava em torno de R$ 180 mil. Entidades ligadas ao jornalismo, como a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) citam “assédio judicial” e “precedente perigoso” ao abordar o caso.
A Abraji, a organização Media Defense e a Robert Kennedy Humans Right entraram com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Além de Gilmar, a reportagem encaminhou perguntas aos ministros que julgaram o caso (Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Rosa Weber), mas não houve resposta até a edição deste texto.
Aposentado desde o ano passado, Marco Aurélio Mello também participou. A reportagem o localizou por telefone, mas ele não quis se pronunciar sobre o assunto. O presidente do tribunal, Luiz Fux, foi procurado, mas sua assessoria afirmou que se trata de decisão de um colegiado do tribunal e que não cabe a ele comentá-la.
Apesar disso, Fux reafirma na manifestação enviada por sua assessoria defender que jornalistas não podem ser “intimidados” nem “amordaçados” em uma democracia. “O ministro Luiz Fux reitera o que afirmou na abertura da exposição ‘Liberdade e Imprensa: O papel do jornalismo na democracia brasileira’: a imprensa é um dos pilares da democracia e em uma democracia jornalistas não podem ser intimidados e nem amordaçados”, disse.
Na mesma nota, o STF afirmou que o tribunal não fez qualquer “análise sobre o valor da indenização ou o conteúdo do livro. A execução do pagamento, bem como a correção dos valores, é de responsabilidade do tribunal de origem [Tribunal de Justiça do DF] que julgou a causa”.
Gilmar acionou a Justiça em Brasília sob a alegação de que o livro sobre a Operação Satiagraha, deflagrada pela Polícia Federal em 2008, atacou sua imparcialidade como juiz, distorceu sua biografia e deturpou o julgamento de um habeas corpus que favoreceu Dantas. Na primeira instância, por não ter sido verificada “intenção difamatória nos escritos do autor [Valente]”, o magistrado perdeu a causa. A sentença da 15ª Vara Cível saiu em maio de 2015.
O ministro recorreu ao Tribunal de Justiça do DF, que chegou a conclusão distinta. Condenou Valente e editora por danos morais a indenizar Gilmar em R$ 100 mil (valores de 2016). Em seguida, a controvérsia chegou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). Em 2019, a pedido de Gilmar, a corte superior determinou, além do pagamento de indenização, a inclusão do acórdão (resultado do julgamento) do TJ distrital em futuras edições do livro de Valente.
Recursos das partes chegaram ao Supremo no ano passado, sob a relatoria de Alexandre de Moraes. O pedido de Valente e da Geração Editorial foi rejeitado por questões formais. Em relação à solicitação do colega de corte, Moraes adicionou que, ao final da publicação, em caso de reedição, deve ser incluído também o recurso apresentado ao STF. Em junho, a Primeira Turma manteve a decisão individual e estipulou multa de 1% do valor atualizado da causa ao jornalista e à editora.
“Eu não cometi erro material, eu não cometi ofensa ao ministro. Vou continuar falando isso sempre”, afirmou Valente, frisando que Gilmar o acusa nos autos até por questões que estão fora do livro, como uma entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura. O jornalista afirma que processos movidos por magistrados no Brasil, sobretudo integrantes de tribunais superiores, merecem atenção especial de quem vai julgá-los.
“Não basta, para a condenação de um jornalista, a interpretação de um texto feita por um magistrado. Simplesmente não basta porque estamos jogando na casa do adversário. O Judiciário vai julgar o que o colega fala”, disse. O advogado Cesar Klouri, responsável pela defesa de Valente, pondera que o livro “Operação Banqueiro” não é uma biografia, não trata especificamente sobre o ministro do Supremo.
“Rubens fez uma narrativa como todos os veículos de comunicação fizeram ao noticiar esses mesmos fatos. É uma narrativa histórica daqueles acontecimentos. Em momento algum do livro existe a hoje tão propalada fake news. Não existe no livro notícia falsa”, disse. Ao apontar riscos para a liberdade de imprensa, Klouri destacou que pessoas de notoriedade, agentes públicos sobremaneira, estão sujeitas a maior exposição, a comentários, a críticas.
Valente cita uma das passagens do livro destacadas por Gilmar e que, segundo ele, foi um dos pontos fundamentais da condenação. O texto aborda o vínculo da mulher do magistrado com o escritório do advogado Sérgio Bermudes, que atuou na defesa de Dantas. “O meu livro faz essa narrativa e diz que ele não se declarou impedido ou suspeito para julgar o processo. Essa narrativa é correta. Não configura calúnia, injúria ou difamação. Tanto que ele não moveu nenhuma ação criminal contra mim. Se eu tivesse atribuído um crime a Gilmar Mendes, ele teria me processado criminalmente. Fiz uma narração objetiva do que aconteceu”, disse.
Presidente eleito da ABI, o jornalista Octávio Costa lembra que todo cidadão tem o direito de acionar a Justiça caso avalie que houve um crime contra sua honra, que uma injúria foi cometida ou de pleitear uma indenização por dano moral, mas não se pode abusar do expediente. “Essa cobrança é exorbitante, abusiva e altamente intimidatória”, diz Costa. ” O objetivo é esse, nunca mais deixar fazer. Eles conhecem o padrão de vida dos jornalistas”.
Em nota sobre o caso, a Abraji afirmou que a decisão do STF contra Valente é um “precedente perigoso” ao impor “um dever de indenização muito grave para o exercício da liberdade de imprensa, sobretudo quando não se verifica nenhum abuso por parte do profissional”. Com informações do Folhapress.