A nova Lei de Improbidade Administrativa, promulgada em outubro do ano passado, especificou quais atos podem ser enquadrados como improbidade na gestão pública, o que, para os defensores da nova legislação, traz maior clareza e segurança jurídica para o assunto. Entretanto, críticos do novo texto alertam que uma das consequências é a ausência de punição, na esfera cível, para os casos de assédio sexual e estupro. Assim, Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa, e o anestesista Giovanni Quintella Bezerra não poderiam mais ser processados por improbidade administrativa, condenação que, dentre outras sanções, impede ocupação de cargos públicos e suspende direitos políticos.
Promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Beatriz Lopes de Oliveira afirma que o novo texto significa um retrocesso na proteção a vítimas de assédio sexual. Em agosto, o STF vai julgar a retroatividade na aplicação da nova lei – o que pode vir a beneficiar condenados por improbidade devido a casos de violência sexual – e o MPSP se habilitou como amicus curiae. A promotora vem preparando memoriais, a fim de sustentar que os novos dispositivos não possam alcançar atos praticados antes da nova lei. “O que mais me deixa chocada é que esse sujeito (anestesista acusado de estupro) pode não perder o cargo. A lei não está protegendo de forma suficiente a administração”, afirma a promotora.
Qual foi a principal modificação da lei, para esse tipo de caso?
A retirada do inciso 1 do artigo 11 da lei. Antes da modificação, era considerada figura típica ímproba “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”, o que dava margem para processos por desvio de finalidade. Era uma hipótese aberta, mas abrangia várias situações concretas, por exemplo o assédio sexual, o assédio moral, situações de perseguição. Sem esse artigo, a lei nova tira a possibilidade de punir isso na esfera cível. Claro que a lei, que é de 1992, precisava ser reformada, mas no final a modificação acabou suprimindo algumas hipóteses de atos ilícitos que eram super relevantes quando pensamos em moralidade.
Mas a pessoa continua sendo processada criminalmente?
Quando pratica ato ilícito, a pessoa pode ser responsabilizada em diversas esferas, inclusive criminalmente. Ou até, nesses casos, responder internamente. Mas a lei de improbidade traz o âmbito cível de punição. Hoje a gente se vê engessado na punição desse tipo de conduta. O que mais me deixa chocada é que esse sujeito pode não perder o cargo. A lei não está protegendo de forma suficiente a administração.
A condenação criminal já não seria suficiente? Giovanni Bezerra e Pedro Guimarães continuam podendo ser impedidos de ocupar cargo e de ter seus direitos políticos suspensos?
Podem ter essas sanções sim, com condenação criminal. Mas só com condenação definitiva, agora. Mas a natureza das sanções é diferente, a Constituição estabelece que as esferas são independentes, e que o ato ilícito seja considerado em todas as esferas. Nosso ordenamento jurídico prevê instâncias diferentes na responsabilização. Muitas vezes há situações em que de repente não há condenação no âmbito criminal por falta de provas, mas que seria suficiente para condenação civil, dando um exemplo, ou que o processo criminal é anulado. A corrupção passiva continua sendo punida no âmbito criminal e cível, por que para o estupro basta só o criminal? Então o argumento de que já tem o criminal e isso seria suficiente não é válido, se não nem precisaria da Lei de Improbidade e só o Código Penal resolveria tudo.
Os defensores da modificação da lei dizem que antes o texto era muito subjetivo
A lei não tem como abarcar todas hipóteses no texto, é preciso ter senso crítico, e análise do caso para dizer se constitui desvio. Se a preocupação era ser mais objetivo, por que suprimir o inciso 1 do artigo 11, que trazia a possibilidade de punir servidor que pratica ato diverso daquele previsto? Falando de forma concreta, o anestesista deveria prestar serviço médico ao que foi contratado e não estuprar a paciente. Ele era perfeitamente enquadrável nessa situação. Só que hoje não tem mais essa hipótese. As críticas sobre insegurança jurídica não justificam supressão de hipótese tão importante.
Costumamos ver casos de assédio condenados criminalmente, as condenações por improbidade administrativa também aconteciam?
Sim, esse tipo de situação vinha sendo punida, inclusive com manutenção nos tribunais superiores. Tem uma decisão do STJ que puniu por improbidade um professor da rede pública de Mias que praticou atentado ao pudor contra três meninas, ao passar o pênis na cara delas. Ele foi condenado por improbidade. A lei agora não protege vítimas de assédio sexual no âmbito cível, me parece retrocesso na proteção. Quando olhamos para a Constituição, ela determina punição dos atos de improbidade administrativa, com perda de função pública, suspensão dos direitos políticos. Então não entendo o retrocesso.
Giovanni Bezerra e Pedro Guimarães não eram servidores concursados, a lei se aplicaria a eles ainda assim?
Sim. O artigo 2 diz que considera agente público não só o servidor e político, mas todo aquele que exerça, ainda que transitoriamente, por contratação, função nas entidades do poder público. Pessoa que possua algum vínculo.
O STF marcou para o dia 3 de agosto o julgamento que pode determinar retroatividade da nova lei a casos condenados no passado. Isso já vem gerando impacto?
Sim, desde que a nova lei foi promulgada, houve pedidos de aplicação retroativa benéfica em grande parte das ações de improbidade administrativa que está em tramitação nos Tribunais Superiores e que contam com condenação de primeiro e segundo graus. Também ensejaram o ajuizamento de diversas ações rescisórias para desconstituir condenações transitadas em julgado. Dependendo do que o STF fixar na tese poderemos ter retrocesso na tutela da probidade administrativa, afetando uma infinidade de condenações por improbidade administrativa. Mas o MP sustenta que a retroatividade das leis é hipótese excepcional no ordenamento jurídico e a Lei nº 14.230/2021 não contém norma expressa admitindo sua aplicação pretérita.
Tramitam também no STF Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) que contestam a mudança na lei. O STF pode determinar o retorno da interpretação antiga?
Sim, há pelo menos três ADIs tramitando e a corte superior realmente pode analisar a própria revogação das novas disposições. Há entendimento de que a mudança legislativa foi inconstitucional pela proibição de retrocesso, de proteção insuficiente, e que não se poderia falar em retroatividade benéfica. O STF também poderia dar interpretação mais ampla ao texto, para incluir essas hipóteses na nova lei. Mas esses julgamentos ainda não estão marcados. Com informações do iG.