Referência da cultura afro-brasileira, o soteropolitano Romualdo Rosário da Costa, ou Mestre Moa do Katendê (1954-2018), era um artista multifacetado. Além de um dos maiores mestres de capoeira de Angola na Bahia, foi um dos grandes responsáveis pela reafricanização do carnaval de Salvador e compôs uma valiosa obra musical, que não havia sido reunida em disco com o autor em vida. O lançamento do álbum “Moa Vive!”, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, com produção musical de Átila Santana, chega em 11 de novembro nas plataformas de streaming afirmando esta memória, para que seu legado também na música seja perpetuado e ganhe o devido reconhecimento.
Um dos fundadores do Afoxé Badauê, Moa reintroduziu o ijexá na Música Popular Brasileira no final da década de 1970. Sete anos antes de seu assassinato por motivações políticas, Moa fez o registro sonoro de suas músicas no estúdio do amigo Átila Santana, que, com este material em mãos, assumiu a frente do projeto. Da gravação intimista entre amigos, que contava inclusive com a percussão do filho de Moa, Raniere da Costa, a produção das faixas ganha novas roupagens nas vozes de artistas da Bahia que se afiliam profundamente à obra do homenageado: Russo Passapusso e Gerônimo Santana, cujas músicas já foram lançadas como singles no mês de outubro; Margareth Menezes e Mateus Aleluia Filho, num dueto; Roberto Mendes, Sued Nunes, Marcia Short e Aloísio Menezes. Ao todo, são nove canções – sete regravadas e duas das gravações originais, com a voz do próprio Moa.
Na instrumentação, está uma lista de músicos de respeito. Percussões nas mãos de Jorjão Bafafé e Gabi Guedes; Felipe Guedes no violão; na bateria, Marcos Santos; Matias Traut no trombone; Sebastian Notini com saxofone e teclados; Juliano Oliveira com teclados; Vinicius Freitas no sax; e Zanah Santos e Andreia Caldas nas vozes. Para completar, Mateus Aleluia Filho, além de cantar, também toca trompete; Roberto Mendes, em sua faixa, faz voz e violão; Ivan Sacerdote, com seu clarinete, Roberto Barreto, com sua guitarra baiana, e Zumbé, com o violão das gravações originais de Moa, fazem participações; e o próprio Átila Santana, que assina a produção musical, também se reveza entre baixo, guitarra e teclados.
“Em que pese a importância dos trabalhos de Moa, são poucas as gravações de suas composições. Não havia, até o momento da proposição deste projeto ao Rumos Itaú Cultural, um álbum com suas canções. Com o seu assassinato, perdemos a oportunidade de viver este momento com o Mestre ainda presente entre nós. Este trabalho representa um esforço de superação – ainda que parcial – dessa lacuna”, contextualiza Átila. “Convocamos a exaltação da memória e da justiça por meio da arte!”, completa o músico.
A seleção das canções se baseou na força representativa, na versatilidade e na diversidade da obra existente, bem como no diálogo com o panorama da produção musical brasileira atual. Como resultado, as músicas revelam a habilidade de Moa em se conectar com o tempo presente, mantendo suas conexões com a cultura afro-brasileira, os afoxés, o samba duro, a MPB, a capoeira e as religiões de matriz africana.
Além do lançamento do álbum, o projeto vai apresentar um minidocumentário de 20 minutos, também intitulado “Moa Vive”, com depoimentos de familiares e artistas nos bastidores da produção do disco. Com direção de Átila Santana e Matheus Leite, que assinam roteiro junto a Waldemar Oliveira, é traçada a relação dos entrevistados com a existência de Moa, sua obra e o impacto de sua partida, evidenciando a importância do seu trabalho para a música brasileira. Entre as presenças no filme, está Somonair Costa, filha de Moa, dançarina afro, que, além de dar seu relato, dança ao som das percussões do disco. O link poderá ser acessado em https://instagram.com/moa.vive também no dia 11 de novembro.
Sobre Moa do Katendê
Mestre Moa do Katendê deixou importantes produções nas áreas de música, dança, capoeira, artesanato, confecção de instrumentos musicais de origem africana e organização comunitária.
Desde a década de 1970, Moa exercia relevante papel de educador, mobilizador comunitário e agitador cultural na comunidade do Dique Pequeno, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador. Engajado no processo de afirmação identitária da juventude negra, mobilizou seus talentos para concretizar um projeto político-cultural de reafricanização do carnaval baiano. Daí seu empenho em criar um afoxé e promover a participação de artistas e moradores da comunidade do Dique Pequeno. Nesse contexto, foi vencedor do festival de compositores do Ilê Aiyê, em 1977, fundou o Afoxé Badauê um ano depois e o Afoxé Amigos do Katendê em 1995.
O Badauê adquiriu grande importância no cenário cultural da cidade no final dos anos 1970 e no começo da década de 80. O bloco foi uma das maiores influências rítmicas da MPB da época – artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Moraes Moreira, Djavan e muitos outros beberam da fonte ijexá que jorrava do Engenho Velho de Brotas. Congregando a juventude negra de distintos bairros e chegando a ter sete mil membros em um único carnaval, o Badauê alcançou o objetivo maior de um afoxé: levar às ruas a riqueza cultural negra na expressão de corpos, sons e imagens. A projeção nacional se firmou quando Caetano Veloso homenageou o bloco com a canção “Badauê”, no disco “Cinema Transcendental” (1979).
Como mestre de capoeira e dança afro, Moa viajou pelo país ao longo de quatro décadas, ajudando a criar grupos de cultura afro-brasileira. Desse modo, ele acabou por obter maior reconhecimento enquanto mestre de capoeira e professor de dança afro do que como compositor ou músico. Sua música, porém, é agora reapresentada ao público em letras e melodias, exibindo sua atemporalidade e beleza.
Sobre Átila Santana
Átila Santana é produtor musical, multi-instrumentista, compositor e pesquisador de música popular, natural de Salvador, Bahia. Fundou e atuou em diversos projetos ligados à musica jamaicana desde o início dos anos 2000 e, a partir da década seguinte, mergulhou no estudo da música afro-baiana, particularmente o ijexá. Entusiasta do home studio e militante no acesso a tecnologias de baixo custo para música, ministra oficinas e cursos sobre o tema.
Em 2012, produziu e gravou no home studio em seu quarto a faixa “Falsa demais”, do compositor e cantor Luiz Natureza, que entrou na coletânea “Bahia Music Export” representando a Bahia na Womex, na Grécia, ao lado de nomes como BaianaSystem, Lazzo Matumbi, Lorimbau, Lucas Santtana, entre outros. Desde então vem produzindo, gravando e colaborando com diversos artistas da cena baiana. Em 2013, fundou a banda IFÁ Afrobeat, onde produziu dois discos e alguns singles lançados em CD, vinil e plataformas digitais, fazendo shows por todo o Brasil.
Em 2017, mergulha no universo da música eletrônica somada aos estudos de claves percussivas ancestrais, sendo aluno do saudoso maestro Letieres Leite. Lançou em 2018 o projeto eletrônico instrumental “Transafoxé”, ao lado de Gabi Guedes e Vinicius Freitas. Em 2020, lançou seu primeiro EP solo: “Át_las – Eu, todo mundo, você”, que foi todo produzido, composto, gravado, mixado e masterizado por ele, em casa, durante a quarentena.
Capa do álbum
Quem assina a capa do álbum “Moa Vive!” é o artista visual soteropolitano Max Fonseca, oriundo de Cajazeiras 11, que trabalha com fotografia, ilustração, pintura, muralismo, vídeo, poesia, design gráfico, instalações e programação criativa para registrar, recriar ou ressignificar o universo simbólico das periferias brasileiras e do candomblé, homenageando e exaltando sua fé e origens. Entre 2013 e 2015, viveu em Luanda (Angola), onde pesquisou sobre linguagens africanas e ancestralidade bantu. Nos últimos anos, vive em Lugano (Suíça), onde estuda novas linguagens digitais num mestrado em Interaction Design. A capa produzida é resultado destas mais recentes pesquisas com inteligência artificial e manipulação digital. A ilustração foi criada com o auxílio de softwares que permitem a criação de imagens a partir de comandos textuais. “Criar imagens a partir de palavras é um exercício conceitual de alta performance, que abre espaço para a casualidade do jeito que a ancestralidade gosta. Achei que era a técnica justa para homenagear Mestre Moa e suas palavras”, explica Max Fonseca.
Faixa a faixa
1 – Presente de Oxum (Moa do Katendê)
Intérprete: Gerônimo Santana
A primeira faixa, “Presente de Oxum”, abre os caminhos com a sonoridade que guiará o disco. É um ijexá com a assinatura de Salvador: fluida, melodiosa e emocionante. O arranjo segue os caminhos da música brasileira da década de 1970 e tem influência de grandes artistas/grupos da música brasileira, como Os Tincoãs, Trio Ternura, Caetano Veloso e Moraes Moreira. Tem presença marcante das percussões e violão, e também de bateria, baixo e piano elétricos.
2 – Nação africana (Moa do Katendê/Waldemiro)
Intérprete: Russo Passapusso
Uma das muitas parcerias que Moa deixou, com o compositor Waldemiro, também integrante do Badauê. Ela estabelece uma ponte direta entre o ijexá da Bahia e o afrobeat nigeriano – ritmo marcado por profunda implicação política libertária. Com naipe de sopros afiado e uma interpretação inspirada de Russo Passapusso, a faixa ganhou um ar de modernidade e inovação, com os pés fincados na ancestralidade, atributos pelos quais Moa ficou conhecido.
3 – Me leva, menino (Moa do Katendê)
Intérprete: Aloísio Menezes
Essa linda canção ganha releitura na interpretação magnífica de Aloísio Menezes, atual cantor do Cortejo Afro, que foi também cantor e compositor do Afoxé Badauê em seus tempos áureos. Para abrilhantar o arranjo da banda, a participação de um dos maiores instrumentistas da cena atual de Salvador: Ivan Sacerdote traça linhas melódicas mágicas com seu clarinete, passeando por influências que vão do choro ao jazz.
4 – Descendente de africano (Moa do Katendê/Guio Alujá)
Intérpretes: Margareth Menezes e Mateus Aleluia Filho
Parceria de Moa com mais um cantor/compositor do Badauê: Guio Alujá. Uma canção forte que ganhou um arranjo cheio de energia, com a banda fluindo pelas melodias através de uma batida cadenciada que mistura ijexá e reggae, na levada de bumbo constante que ficou famosa em músicas de Bob Marley, como “Jamming” e “Is this love”. Uma obra prima daquelas que convidam a cantar já no primeiro refrão, elevada à máxima potência na interpretação poderosa em duo com Margareth Menezes e Mateus Aleluia Filho.
5 – Omim (Moa do Katendê)
Intérprete: Sued Nuenes
Uma canção que Moa compôs para sua tia, a ialorixá Omim. Tem uma melodia alegre e festiva, por isso ganhou um arranjo inspirado na própria levada percussiva que Moa tocava e que encontra similaridades muito grandes com o Highlife de Gana ou a cadência do som caribenho dos Les Aiglons, grupo das Antilhas francesas. Na instrumentação, um naipe de sopros cheio de suingue no arranjo de Vinicius Freitas.
6 – Oxum (Moa do Katendê)
Intérprete: Marcia Short
Com uma interpretação esplêndida de Marcia Short, mostra todo o brilho das composições de Moa que marcaram uma época no Badauê e, através dele, em todo o Brasil. A identificação de Marcia era tão grande que ela nem precisou da letra: já a conhecia de cor desde a infância no bairro do Engenho Velho de Brotas. A banda, com presença de Roberto Barreto na guitarra baiana, busca acentuar a batida característica e alegre do Badauê, que influenciou a MPB no final dos anos 1970 e começo dos 80.
7 – Bate a massa (Moa do Katendê)
Intérprete: Roberto Mendes
Uma canção de Moa em homenagem à baiana de acarajé e à comida em si, interpretada maravilhosamente por Roberto Mendes na voz e no violão, traduzindo os tambores de Moa nas cordas do violão e na doçura da voz.
8 – Gina (Moa do Katendê)
Intérprete: Moa do Katendê
Uma canção emblemática do mestre Moa, lembrada por várias pessoas que conheceram sua obra como um dos seus ijexás mais belos. Tem a cadência doce das composições de Moa em tonalidade maior e a mandinga de um poeta capoeira cantando a sua musa. Também exalta o Afoxé Badauê e todo o “mar azul musical” que provém dele.
9 – Berimbau (Moa do Katendê)
Intérprete: Moa do Katendê
Uma ode ao berimbau, instrumento de origem africana que, nas palavras do próprio Moa, “tem um som magnético e nos convida à roda para jogar, dançar, cantar”. O som do berimbau do Mestre Moa tocado como um mantra ritual é abraçado pelas harmonias das seis cordas do violão de Zumbé, remetendo aos afro-sambas de Baden e Vinicius, mas também às ladainhas das rodas de capoeira angola, onde Moa tanto nos ensinou.
Sobre o Rumos Itaú Cultural
Um dos maiores editais privados de financiamento de projetos culturais do país, o Programa Rumos é realizado pelo Itaú Cultural desde 1997, fomentando a produção artística e cultural brasileira. A iniciativa recebeu mais de 75,8 mil inscrições desde a sua primeira edição, vindas de todos os estados do país e do exterior. Destas, foram contempladas 1,5 mil propostas nas cinco regiões brasileiras, que receberam o apoio do instituto para o desenvolvimento dos projetos selecionados nas mais diversas áreas de expressão ou de pesquisa.
Os trabalhos resultantes da seleção de todas as edições foram vistos por mais de 7 milhões de pessoas em todo o país. Além disso, mais de mil emissoras de rádio e televisão parceiras divulgaram os trabalhos selecionados.
Na última edição, de 2019-2020, os 11.246 projetos inscritos foram examinados, em uma primeira fase seletiva, por uma comissão composta por 40 avaliadores contratados pelo instituto entre as mais diversas áreas de atuação e regiões do país. Em seguida, passaram por um profundo processo de avaliação e análise por uma Comissão de Seleção multidisciplinar, formada por 23 profissionais que se inter-relacionam com a cultura brasileira, incluindo gestores da própria instituição. Foram selecionados 90 projetos. Com informações de assessoria.